quinta-feira, 20 de junho de 2019


Albertina e Valentina

Beatriz Vargas
Oficina da Escrita – 18/06/2019

As tias Albertina e Valentina são fantasmas amigos de minha infância. Posso vê-las deslizar pelos corredores do casarão de Itabira e ainda ouço o ranger de seus passos no assoalho de madeira. O casarão, hoje decaído, foi comprado pelo pai de meu bisavô Eduardo, no início do século XIX, com o dinheiro da venda de parte de sua herança ao Barão de Catas Altas. Nessa época, meu bisavô se mudou com a família para o povoado de Sant’Ana, depois Itabira de Mato Dentro. Foi no casarão que Eduardo nasceu. Ele era o pai das gêmeas Albertina e Valentina, e também de Elvira, Eleonora e de minha avó, Jacintha, única filha de seu segundo casamento, aos setenta anos de idade. Elvira e Eleonora faleceram muito jovens. Primeiro, Elvira, de meningite; depois Eleonora, de pneumonia “galopante”, como falavam os antigos. As cinco irmãs nasceram no casarão, onde Albertina e Valentina, no mesmo dia, também morreram. As duas ocupavam um quarto com três enormes janelas que se abriam para o nascente, sobre canteiros de zínias e palmas-de-Santa-Rita. Menina, eu as espiava pelas frestas da porta, dedicadas a um ritual noturno e interminável. Sob a luz amarelada de um pequeno abajur art nouveau, escovavam, uma à outra, os longos cabelos brancos, revezando-se no banco em frente ao espelho oval da penteadeira. Em público, porém, traziam os cabelos presos na forma de um coque baixo, próximo à nuca, que, obediente, jamais se desprendia. A visão clandestina de seus cabelos soltos, como um véu de seda ondulada a lhes cobrir as costas até a altura dos quadris, tinha, para mim, o sabor de uma aventura quase pecaminosa.
O quarto de Albertina e Valentina era o único lugar da casa onde não se viam imagens de santos – e a casa inteira foi despida dessas imagens depois da morte do meu bisavô. Não frequentavam missa e à igreja não iam nem para os funerais, nem para os casamentos, nem para os batizados. Mudavam de calçada toda vez que avistavam o Padre Brás, para evitar suas lamúrias e seu mau humor. Caminhavam sempre de mãos dadas. Dois anjos de doçura uma com a outra e ambas com toda gente. Durante a vida, ninguém as ouviu gritar ou pronunciar um único palavrão que fosse. Não falavam da vida alheia, não saíam depois das seis da tarde, não iam a salões de beleza e mantinham bem fechadas as janelas da frente do casarão. Para elas, a coisa mais “sem graça” do mundo eram as flores de plástico. Cultivavam o jardim mais bonito de toda a cidade, com ajuda de Teodoro, o velho jardineiro da prefeitura, e de Eulália, a empregada da família, outra solteirona habitante do casarão, dez anos mais nova que as duas irmãs. Muita gente vinha ver ou fotografar o jardim das minhas tias. Elas recebiam sorridentes os visitantes, com bandejas de café e licor de jabuticaba. Foram elas que me ensinaram todos os nomes de flores que eu sei. Divertiam-se comigo, ainda bem pequena, por tropeçar nos canteiros e nas sílabas de astromélia marsala, dendrobium e phalaenopsis.
As tias eram altas e delgadas, de formas corporais pouco acentuadas, exceto pelos grandes seios, sustentados por sutiãs de aro e espuma, que se viam ainda mais volumosos por conta dos panos fartos. Não se permitiam nem o mais comportado dos decotes. Tinham feições delicadas, nem feias e nem bonitas. Gestos suaves e contidos. Pele clara marcada por manchas senis nas mãos, nos antebraços e no rosto. Falavam sempre tão baixinho que tudo parecia segredo. Era impossível ouvi-las numa sala repleta de gente ou à mesa das refeições em família. Albertina tinha um olho castanho e outro azul. Valentina tinha os dois olhos azuis com manchas castanhas, como – diziam – os de meu bisavô Eduardo, seu pai. Usavam vestidos discretos de saias longas, mas também calças compridas, como só os homens de seu tempo. Roupas de cores diferentes para cada dia da semana. Estavam sempre juntas, nunca se separavam. “Por isso é que não se casaram...” – concluía, compadecida, minha avozinha, que não podia imaginar a vida sem meu avô João Cândido.
Albertina e Valentina mantinham o orfanato da cidade. Por muito tempo, também foram as principais doadoras da Sociedade Médica de Profilaxia da Lepra. O único período em que moraram fora de Itabira foi para estudar no Conservatório de Música em Belo Horizonte, mas não chegaram a se formar. Lá frequentaram rodas de jovens e intelectuais anarquistas. Meu bisavô as trouxe de volta a Itabira, antes que estourasse a Revolução de 1930. Pouco tempo depois, engajaram-se na campanha nacional pelo voto feminino. Em São Paulo, conheceram Bertha Lutz e, graças à influência da nova amiga, publicaram artigos sufragistas em um grande jornal da época. Chegaram a integrar a Liga das Mulheres Eleitoras. Concluíram sua formação musical na Europa, para onde, anos seguidos, iam a estudo ou a passeio. De lá regressavam com malas cheias de presentes para as crianças da família e do orfanato. Tinham fortuna suficiente para viver sem trabalhar, mas davam aulas de canto e piano para meninas e moças. “Invertidas!” – bradavam as beatas indignadas. “Não se uniram a ninguém para não ter que dividir seu patrimônio!” – sentenciavam as bem-casadas. Minhas tias não demonstravam qualquer indício de irritação com esses comentários. Àqueles que os reportavam, faziam apenas o gesto do indicador sobre os lábios cerrados, para depois sorrirem, complacentes.
Albertina e Valentina, já idosas, como sempre as conheci, organizavam piqueniques para as crianças do orfanato e, quando possível, eu ia junto com elas nessas excursões. Passava minhas férias em Itabira, onde as tias me ensinaram a andar de bicicleta, a cantar o hino da internacional anarquista em francês e a odiar a Companhia Vale do Rio Doce.
No primeiro domingo de cada mês, no começo da noite, meus avós as visitavam no casarão. Tomavam vinhos e licores, comiam delícias preparadas por Eulália e dançavam ao som de peças populares executadas ao piano pelas “Tinas”, como as chamavam em tom carinhoso, de brincadeira. Às vezes jogavam cartas, às vezes apenas conversavam. Os quatro se davam muito bem. Meu avô João Cândido e as “Tinas” eram amigos desde a infância e minha avó a irmãzinha órfã de mãe que as duas ajudaram a criar. Os encontros não terminavam cedo. Bem depois da meia noite, acompanhados por Eulália, seguiam juntos até o portão, onde se despediam. E eram muitos os abraços e tantos os agradecimentos que fica difícil entender como lhes foi abater a tragédia justo nessa hora. Era verão, mas uma brisa fresca soprava rio acima, espalhando o aroma das damas da noite que ladeavam a entrada do casarão. Quando o portão se fechou, um enorme cachorro branco atacou minha avó, rasgando-lhe a artéria do pescoço, antes de avançar, ainda mais carniceiro e feroz, sobre meu avô João Cândido. Albertina e Valentina jamais se recuperaram do choque e do horror daquela noite. Nunca mais atravessaram o portão e o piano foi doado ao orfanato. Doentes, definhavam a olhos vistos. Com elas murcharam todas as flores, menos as saudades que desabrochavam sob as três janelas do quarto onde Eulália as encontrou de mãos dadas, numa linda manhã de sol, dormindo seu último sono. Faz muitos anos que não volto a Itabira e o casarão é somente uma foto em preto em branco no meu álbum de família.