domingo, 31 de julho de 2011

E U Z A

E u z a...
O mesmo que Elza,
Menina-deusa, mulher que ousa.
É teutônica – dizem – a origem do nome,
Mas eu falo de uma Euza brasileira,
Que é mineira, calorosa, acolhedora...
- “Viva a sua companhia!” –

Essa Euza é lutadora e poderosa...
Fortaleza. (Força, Euza!)
Que risada tão gostosa!
Riso fácil, riso solto, terapêutico.
Na cozinha essa mulher tem mãos de fada,
E sua magia é de curar tristeza...
Em sua mesa, farta mesa, sempre muitos...
Em seu abrigo, seu regaço, aconchego...

Essa Euza é curiosa e virtuosa,
Aventureira e comunicadora.
É razão e compaixão,
Companheira, provedora.
Água revolta, sublevadora,
Eleva-se sobre si mesma,
Espírito da liberdade
Em plena evolução,
Em constante mudança,
Meta-forma, trans-formação.
Também é água mansa e pacificadora
Que purifica e revigora.
Água boa, águamãefontedavida...

Euza é Unes, une e reúne,
É verbo de ligação,
A família é sua terra,
Onde planta o coração.

Euza é Maria – Euza Maria,
Ave Maria – reza – cheia de graça...
E os sinos tocam e o tempo passa.
Euza-Cidinha, Euza-vó-Nega...
Euza que foi, que vai, que chega.
Euza-Silas, Marcela, Paulo e Flávio
Muitas vezes nela mesma.
É mulher, irmã e filha,
cunhada, neta, sogra e tia,
esposa, mãe, avó...
Muitas Euzas...
E uma só!

E em nome do bom humor
- que ela sempre cultiva –
Aqui vai uma historinha:
Era uma vez Euza menina,
Com filó de bailarina
E um grande laço de fita...
Depois é moça crescida,
Namorada, tão bonita!
E hoje nos seus 60,
Em sua elegância madura,
Traz com ela a formosura
Dos tempos de juventude...
(E nada de xale, tricot, nem de sapato baixinho!)
Enfim, a Euza é assim,
E sempre será, para mim,               
uma bela e doce amiga!

Parabéns, Euza, querida!

Brasília, 20/XII/2010
Beatriz Vargas Ramos

domingo, 10 de abril de 2011

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaPalavrasaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

As palavras que não saem da minha boca
Não são as palavras que eu não posso dizer.

As palavras que não saem da minha boca
São as palavras que eu não quero dizer.

- O silêncio é feito de palavras -

Nem todas as palavras são para dizer.
Há algumas que são para pensar...
(Também são palavras as palavras que são para pensar?)
Não são precisas palavras para pensar.

É preciso palavras?

Cada vez menos palavras entre nós...
Cada vez entre nós
Menos entre nós
Palavras.

George Bush tropeça em palavras,
Os democratas também,
As igrejas veneram palavras,
A ONU adora palavras,
O cinema não existe mais sem palavras,
Nem a televisão, nem o poder,
A literatura é só palavras,
Assim como os poemas,
A guerra precisa de palavras,
O amor desperdiça palavras,
Você adora as palavras...
Você adora suas próprias palavras,
Você já não se interessa pelas palavras que eu tenho a dizer,
Ou as que eu não quero dizer,
Ou as que eu não tenho mais a dizer.
Dizer...
O quê???

As palavras doem,
Nem sempre doem...
As palavras.

sábado, 19 de março de 2011

50 anos

Beatriz Vargas Ramos

Um dia eu vim...
Não me lembro como nem quando.
Sei do que me contaram...
Que vim à força, a fórceps, tenaz
Eu não sabia como foi ou como seria,
Nem sei se queria, só sei que cheguei.
Nada escolhi.
- Ninguém escolhe –
Mas tive sorte, eu tive amor.
Depois veio o tempo do medo.
Tempo lento, paralisado,
Sem saída, sem futuro.
Tempo de palavras sem fala,
Meu silêncio.
Tempo da consciência do medo.
Medo da lua, do escuro, do trovão.
- Atavismo? Acho que não... -
Tempo de desamparo e de abismos,
Da escola-prisão, da cidade-prisão.
Naquele tempo lento somente o rio era movimento...
O trem-de-ferro, minha metáfora do mundo,
Mundo que eu não conhecia, mundo que não era meu.
Tinha pressa de viver, de seguir os trilhos,
Mas não saí da estação.
A ponte imóvel, a pedra imóvel,
A hora dos sinos, do apito da fábrica,
Surpresa nenhuma, nenhuma transformação.
Ritmo de velhos em procissão.
A mesma festa de São João.
Só o cinema fechou.
Caminhos batidos.
Faria Lemos, Carangola, Catuné,
Pedra Dourada, Espera Feliz,
Uma vez Manhuaçu, Manhumirim,
Porciúncula, Natividade, Varre-Sai.
O ir e vir da escola:
- “Bom dia, Dona Dinorah”!
- “Boa tarde, Seu Olinto”!
O prédio branco do hospital,
A cadeia cinza, a escola cinza,
A praça da matriz e as murtas podadas em forma de bichos.
Desfilam os loucos sobre os paralelepípedos da rua principal.
E tinha Sá Eulália em visitas à casa de minha avó.
- Sá Eulália não acreditava em arranha-céus -
Foi escrava, todos diziam, e ela confirmava,
Mas não tinha idade, não se lembrava, de tão velha.
Tinha o Homem do Palmito que batia de casa em casa:
- “Olha o palmito”! – e eu fugia dele, com medo do surrão.
O hotel ainda está lá, hoje se chama “Colonial”.
O trem da Leopoldina não existe mais.
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Meu pai me acudia nas noites de pesadelo,
Eu chamava meu pai que me contava histórias:
Nesse surrão entrei, nesse surrão morrerei,
Por causa do brinco de ouro, que lá na pedra deixei”...
Minha mãe cantava e eu dormia.
Meu pai gostava de Sarita Montiel, La Violetera
- María Antonia Alejandra Vicenta Elpidia Isidora Abad Fernández -
E ouvia no rádio a Ângela Maria.
E eu repetia: “Nikolas Anlexandrovich Eristoff”
E “Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim
- Eu gostava de provocar o riso, ainda gosto –
Em maio, minha mãe me vestia de anjo azul.
Minha irmãzinha era o anjo cor-de-rosa, tão bonitinha...
Triste anjinho era eu...
(Minha mãe era a única que pensava
Que eu seria a rainha da primavera da Escola).
Maio era o frio e sempre será o cheiro de café com leite,
De pão quente com manteiga, de bolo assando,
Cheiro de pão de batata no forno à lenha da vó Dedê,
De goiaba no pé, de goiaba no tacho.
Dezembro era a missa do galo, nozes e rabanadas,
Passeios no Jipe do meu pai, na estrada de terra para Varre-Sai.
E as mangueiras do pomar...
Mais adiante a solidão me aguardava.
Mundo hostil, sem amigos.
- Naquele tempo eu ainda não sabia
Que não me pertencia o fardo que suportei -
Sem defesa, sem razão.
Sem mar, sem filosofia.
Minha, só minha, era a dor que eu sentia,
Aquela dor que era minha,
Uma dor somente minha,
Minha dor que eu carreguei.
Cerca de arame farpado.
Feia, magrela, pés chatos, boca suja.
No lado gauche da vida me confortei.
Estranha philia de negra e judia
- O navio negreiro, espumas flutuantes, a história de Anne Frank -
Me afeiçoei aos poetas, aos miseráveis, aos doentes,
Aos bandidos e aos dementes,
Aos hereges e aos mal agradecidos eu me aliei.
Ah, se eu pudesse ter minha temporada no inferno!
Ah, se eu fosse Rimbaud!
Ah, se eu falasse francês e fumasse ópio...
Se me mudasse pra Paris!
Se morresse jovem, se ficasse tísica,
- Alguém teria pena de mim? -
Ah! Se eu fugisse com o circo mambembe,
Se os ciganos me levassem pra longe,
Se eu partisse no disco voador...
Se eu nunca mais voltasse, se não sofresse mais.
Alma pequena, afligida e torturada,
Construí meu próprio gueto,
Meu quilombo, meu refúgio...
Sob as copas exuberantes das mangueiras do pomar
Eu me escondi.
Me trancaram no armário, tomei caldo na piscina,
A torcida queria se vingar de mim...
Apanhei muito, mas também bati.
Até aqui cheguei...
“Do tempo que sobre a terra me foi concedido”
Já se passaram 50 anos.
Vivi, sobrevivi.
Graças à cesariana, ao hormônio sintético
E às drogas de controle do nível de açúcar
Sou viável no século XXI.
Já teria morrido três vezes no passado...
Eu tinha minha irmã, minha mãe, meu pai, meu avô,
Meu aconchego, minha proteção.
Eu tinha ciúmes do meu irmão.
Meu irmãozinho, leãozinho, nossas brigas sem razão...
Eu não tive tempo de contar ao meu pai
Que meu ciúme ficou para trás...
Ah! Quantas coisas eu nunca mais pude contar ao meu pai...
Nas férias eu tive amigos, meus primos,
Minha Monark vermelha, meus desenhos, meus bichos
- Godofredo de Bulhões, Rolinha, Petit Pois
Os porquinhos da India, o jabuti, o cachinguelê -
Meus livros, minhas bonecas de papel,
Meus sonhos, meus planos.
Tinha a Olivetti portátil que meu pai trouxe do Rio,
Meus escritos, meus poemas... meus afetos,
Minha Professora, Dona Gilka, meu anjo da guarda,
Tia Edith, tão boa, tão sozinha, tão tristinha,
Minha doce avó Filhinha,
Meu amigo Zé Aguiar, que levou pra sempre meu Mar de Mineiro.
.................................................................................................................
Cresci... chegou o tempo em que eu sabia tudo,
Podia tudo e não temia mais.
Belos Horizontes se abriram,
Abri os braços, enchi os pulmões.
Era o tempo da amizade.
Depois muitos ganhos e perdas
E também muitos enganos.
Vidas no fim e no começo.
As viagens que nunca fiz,
Os abraços que nunca dei,
Todos os vinhos que eu bebi,
Todos os choros que eu chorei...
Ah! Se eu fosse bailarina,
Se eu tocasse piano, se eu fizesse música...
.......................................................................................................................
Amadureci...
Soltei o verbo, soltei a franga,
Não tenho verba, não acumulei.
Amores vieram e amores passaram.
A criança desamparada também passou.
Nada dura cem anos,
Só a solidão dura cem anos...
Vieram meus filhos, entendi minha mãe.
Ah! Os filhos ensinam!
Como são amados os filhos!
Por causa deles, entendemos melhor o amor,
O amor aos outros e aos filhos dos outros.
Eles são para sempre... os filhos.
Eu também quero netos!
A eles vou ensinar todos os palavrões que eu sei
- Os melhores palavrões são em português -
Tenho dúvidas, cometo erros,
Pobre de quem nunca erra...
Minto e devo, devo e não minto.
Ainda choro, sofro outras dores só minhas.
Tenho medo da loucura, medo de perder a memória,
De ficar cega, de perder os filhos, medo de ficar velha senil.
- E também um medo indescritível de barata -
Não sou patriota, não sou de direita,
Não sou otimista nem fundamentalista,
Não gosto de sofrer.
Nada de vítimas, nada de carrascos.
Exorcizei a culpa confirmada pelo batismo.
Nenhum Deus.
Não preciso de um pai, não quero senhores nem reis.
Posso ter as ondas do mar, posso ver o mar,
Posso sentir o vento no rosto.
Ah! Se eu fosse jovem outra vez.
............................................................................................................
Um dia eu vou embora,
Não sei como
- Ninguém sabe -
Só sei que vou partir,
Voltar para o lugar de onde eu vim.
Sei que vou, mas vou sem medo,
- Não tenho mais medo do escuro, ele faz parte de mim –
Sem inferno e sem paraíso.
No fim há um poço cego, diz o poeta,
Caminho só de ida.
Mas assim também é a vida,
Não tem volta...
Talvez, quem sabe, alguma luz.
Já me conformei com a partida,
O fim é menos insuportável que a ideia de nunca ter fim.
Só não queria ir embora no meio da festa...
Não levo bagagem,
Não preciso de nada,
Meu vôo será leve e sem controle,
Apenas vou... quero me deixar voar.
Nada me pesa, recusei a herança do ódio.
Irei em paz,
Sem culpa nem perdão,
O perdão precisa da culpa,
Eu não tenho culpas e nem culpados.
Fiz escolhas,
Nenhuma escola me fez.
Eu sou de todo lugar, qualquer lugar, lugar nenhum.
Só queria viajar... os trilhos, o mar.
O rio trágico e seus barcos fantasmas, o trem-de-ferro.
Ah! O trem...
Nunca mais o trem.


(Fevereiro de 2011)

quinta-feira, 3 de março de 2011

Sonora Tropicante no programa Refrão, da TV Justiça, Brasília, DF



Amigos, convido-os a assistir a Sonora Tropicante tocando "Candangolombiano" e a entrevista do Carlos. Para quem não conhece é uma ótima oportunidade de ouvir a Banda, para quem conhece é uma boa ocasião para matar a saudade. Beatriz

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Estamos cegos

Beatriz Vargas Ramos

No último domingo, 30 de janeiro, eu li, na Folha de S.Paulo, o artigo intitulado “Como cego em tiroteio”, assinado por Ferreira Gullar – que dispensa apresentação, um dos maiores poetas de língua portuguesa, admirado por milhões de pessoas, entre as quais eu me incluo. O artigo abre uma série de questões importantes para um debate público sobre o assunto das drogas. Diz o autor do texto que “A solução do problema do tráfico está na redução do número de consumidores de drogas”. Não há dúvida de que, também no mercado das drogas ilícitas, a oferta do produto guarda relação direta com a demanda. Se existe oferta é porque existe procura por droga. Aqui, bem entendido, “solução” do tráfico de droga é algo que somente pode ser concebido na linha da “redução” do problema e não da sua “eliminação”. Simplesmente porque não há como acabar com a droga. Seu consumo, prática universal e milenar, não é um acontecimento anormal, alheio ou paralelo à vida em sociedade, mas, ao contrário, é um fenômeno a ela inerente e por ela mesma produzido – vale dizer, normal, o que não se confunde com saudável ou recomendável.
O lema que marcou a Assembléia Especial da ONU, em junho de 1998, ocasião em que a UNODCCP – United Nation’s Office for Drug Control and Crime Prevention – adotou o plano Scope (Strategy for Coca and Opium Poppy Elimination) de erradicação, até 2008, de todos os plantios de coca e papoula do planeta, de forte carga propagandística, nada tem de realista: “a drug free world: we can do it”! Levada às últimas consequências, a promessa de erradicação plena do plantio de papoula, por exemplo, conduziria à extinção da morfina, usada para aliviar o sofrimento de pessoas que têm membros amputados ou para aplacar a dor de doentes graves ou terminais. Numa adoção às avessas do tema de uma outra propaganda, a da campanha eleitoral de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos, em 2009, poder-se-ia dizer, em relação ao projeto irreal de “tornar o mundo livre de drogas”, “no we can’t!”. Não, nós não podemos varrer a droga do planeta. O ideal de uma sociedade sem drogas não corresponde a uma decisão individual – ou coletiva – por uma vida sem drogas, a não ser que queiramos impor aos outros – por qualquer “boa” razão, nossa sempre boa razão, na melhor das intenções de espalhar o bem e não deixar perder as almas, seja por motivos de ordem médica, filosófica, religiosa, jurídica – nossa convicção pessoal de não tomar vinho ou uísque, de não fumar tabaco nem maconha, de não usar viagra e lexotan, de não comer chocolate, não cheirar lança-perfume ou não aspirar cocaína... Não é porque o uso do álcool, sobretudo seu abuso, produz efeitos nocivos à saúde das pessoas que vamos proibir sua produção e circulação – ou, mais ainda, não é por isso que vamos incriminar as diversas ações que vão do plantio da cana-de-açúcar, passando pela produção de bebidas alcoólicas, até o armazenamento, transporte e comércio dos produtos. De pleno acordo com Ferreira Gullar, quando ele diz que reduzir o número de consumidores é algo que tem de passar pela informação – ampla e qualificada, além de acessível ao maior número de pessoas – sobre a natureza e os efeitos destrutivos da droga. E aqui, eu diria, não apenas das drogas ilícitas, mas também das inúmeras drogas lícitas, produzidas pelo lucrativo business das mega empresas farmacêuticas que dominam o mercado da saúde e que se acham à disposição do freguês de qualquer sexo, idade ou lugar social. No campo das drogas lícitas, os interesses dos produtores e comerciantes das drogas lícitas, farmacêuticas ou não, como o próprio álcool e o cigarro – sabemos! – são muito mais importantes que a saúde pública (que me corrijam os mais entusiastas da telinha, mas faz pouco tempo que eu comecei a ver campanhas televisivas de orientação contra o consumo de álcool entre os adolecentes).
De nossa parte, nós, ocidentais em geral, não demandamos muita informação sobre nossa própria saúde, e desde há muito que já entregamos a terceiros – os médicos – o domínio sobre nosso corpo, ou seja, nos livramos da responsabilidade de obter os mais elementares conhecimentos sobre nosso organismo e do esforço de zelar pela nossa própria saúde física e mental. Terceirizamos nossa saúde, para usar uma palavra moderna. Não há dúvida de que o acesso à informação é a melhor forma para pessoas maduras, livres e capazes poderem exercer, no mínimo, aquilo que se chama de administração pessoal, e o mais segura possível, do uso de droga, qualquer droga. Por isso mesmo, faz sentido pensar que o conhecimento e a informação – desde logo varridos do vocabulário da política proibicionista que inventou o conceito de droga ilícita – pode levar até mesmo à abstenção do seu uso, e, consequentemente, à redução da oferta, na via da redução da demanda. E, no entanto, sabemos, mesmo a informação mais ampla e qualificada sobre drogas não pode ter pretensões de colocar fim ao consumo. O comportamento consumista, qualquer que seja o produto, é influenciado pelos desejos e pelas necessidades do consumidor e este é o espaço do indivíduo consigo mesmo, onde a tomada de decisões é pessoal e cada um escolhe o que quer para sua própria vida. A tutela estatal encontra seus limites nessa esfera de exercício da liberdade individual. A atividade do poder legislativo de seleção de condutas que deverão constituir crime não se confunde com o poder de impor convicções éticas, religiosas ou morais. Aqui, simplesmente, não há porquê emitir um juízo de valor sobre os desejos e necessidades de cada um, como também não há como desconhecer influências de toda ordem no processo mesmo de formação desses desejos e necessidades – o que apenas demonstra a fragilidade do conceito de livre arbítrio, de liberdade de escolha na origem da ação humana (somos livres para fazer exatamente o que já foi eleito como modelo de conduta, para imitar o comportamento da classe dominante, para assimilar os símbolos de poder e dominação, para nos inscrever na realidade segundo os padrões aceitáveis e determinados pela cultura de massas, enfim, somos livres para “escolher” o tênis Nike).
A experiência revela, contudo, que a proibição, sob ameaça de prisão, não garante a abstenção do usuário (basta lembrar da experiência da lei seca norte-americana, cujo principal resultado foi a explosão da criminalidade com o enriquecimento de máfias e que levou ao descrédito da Justiça e à desmoralização das autoridades).
As penas de advertência sobre os efeitos da droga, de prestação de serviços à comunidade e a medida de comparecimento a programa ou curso educativo, todas previstas na lei em vigor, são preferíveis à pena de prisão, mas não são eficazes na redução do consumo.
O consumo de drogas, ilícitas ou não, é a regra no mundo de hoje, não a exceção. Nunca nos disponibilizaram tanta droga (é verdade que nem todos têm acesso a esse mundo do consumo, seja por causa do alto valor do produto, seja porque pertencem a uma classe social em relação à qual não se tolera o mesmo comportamento da chamada elite). Como diz Vera Malaguti Batista, há drogas para dormir e drogas para acordar, drogas para emagrecer e para engordar, para sonhar, para vencer, para ser feliz, para acelerar, para concentrar, para fornicar... É no mínimo curioso o fato de sermos incentivados a substituir o esforço pessoal pela satisfação imediata que algumas drogas, as “boas”, nos oferecem e, ao mesmo tempo, termos vedado o acesso a outras drogas, as “más”. A situação é comparável a outro quadro. Nossas leis de trânsito determinam como infração ultrapassar a velocidade máxima permitida, mas a indústria automobilística pode nos vender automóveis que desenvolvem mais de três vezes aquele limite... Compramos a promessa de velocidade, vale dizer, a garantia de sucesso, poder e prestígio social. Somos estimulados a transgredir?
Mais uma vez tem razão Ferreira Gullar ao dizer que, “do mesmo modo que a maioria dos consumidores de bebidas alcoólicas não é alcoólatra, a maioria dos consumidores de drogas as consome socialmente”. Bem, ainda que a afirmativa possa não ser válida para todos os tipos de droga – o crack, para citar somente este caso, tem capacidade de gerar um número maior de usuários compulsivos, principalmente entre a população pobre que não tem acesso a drogas caras –, permanece válida diante de um quadro mais geral de usuários. Por isso mesmo, não tem sentido tratá-los a todos como doentes. Também por isso não é razoável convocar o direito penal, mesmo que por intermédio de penas alternativas à prisão. Dentro da lógica da proibição o consumidor é vitimizado, ou imbecilizado, ou, o que está mais em voga ultimamente, culpado pelo resultados da violência na guerra ao tráfico.
Acontece que no terreno do proibicionismo o diálogo também está proibido, não há lugar para a argumentação, para o convencimento (o capitão Nascimento não tem que se justificar quando enfia um saco plástico na cabeça do bandido, porque, afinal, será sempre para o bem de todos, pela e para a boa sociedade – não há excessos quando os fins justificam os meios, pois, afinal, o capitão, na clássica tensão entre lei e ordem, inventa sua própria lei, quando a lei a quem deve obediência não é suficientemente “boa” para garantir a manutenção da ordem). Aliás, os motivos, os meios e os fins já estão predeterminados, já foram definidos nessa guerra, cumpre demonizar o traficante, o inimigo público nº 1, a personificação do mal, e imbecilizar a vítima, o usuário de drogas.
A lógica do combate não é dialógica. Uma conversa franca sobre drogas implica desnaturalizar ideias, apontar distorções e erros, historicizar conceitos, arrefecer ódios, paixões e medos, substituir a violência pela inteligência, enfim, abrir o debate, voltar à discussão que foi encerrada pela criminalização.
Quando a incriminação de um comportamento deixa de corresponder à opinião de uma grande massa de cidadãos, desaparece a justificativa democrática para manutenção da lei. Se o tratamento da questão do consumo parece caminhar para a adoção de alternativas à prisão ou mesmo da própria descriminalização – o que não significa, necessariamente, ausência de controle por outros meios diversos do aparato criminal –, não seria absurda nem desastrada a adoção de medidas correspondentes em relação à produção e ao comércio de droga. Assim, por exemplo, trocar a prisão do pequeno traficante por trabalho comunitário é medida perfeitamente consequente com a abolição da prisão para o consumidor. Qualquer resposta diferente do proibicionismo rotundo implica, no mínimo, reduzir a resposta criminal também em relação ao comércio de drogas, porque, em última análise, é inconcebível tolerar o uso e, ao mesmo tempo, proibir o comércio. Acabar com a pena para pequenos traficantes não é liquidar com a Justiça. Não há menos justiça sem a polícia. Sem a polícia, sobretudo no específico caso do pequeno traficante, pobre, primário, em sua maioria jovem e sem perspectiva de inclusão no mundo do consumo, padrão atual de felicidade e realização pessoal, o que se reduz é a violência.
A pergunta, e aqui já está manifesta a discordância de opinião com o autor do artigo, não é se a sociedade, há séculos, pune criminosos e estaria disposta a acabar com a Justiça e com o aparato policial, a despeito de sua incapacidade de redução do crime. Cumpre, antes, perguntar se é legítimo um direito que contraria a realidade social dos fatos e, além de se mostrar incapaz de afetar o resultado a que se propõe impedir, acaba produzindo, principalmente entre a população mais vulnerável – os pobres – mais danos do que a própria droga pode trazer à “saúde pública”, sem alterar o status daqueles beneficiados pelo rentável negócio do tráfico.
Importa perguntar, antes, pela natureza do processo pelo qual, através dos séculos, definiu-se o que seria crime e quem seriam os criminosos, distribuindo-se desigualmente a justiça, como nos ensina a história do poder de punir.
Não é verdade que o sistema é ineficiente para prender o traficante. Ele simplesmente não consegue cumprir a promessa de condenar e prender os atores mais importantes no cenário do tráfico e de condenar e prender na proporção em que a norma penal é infringida.
Mesmo assim, o tráfico é o campeão das prisões. Segundo dados do InfoPen, Sistema Integrado de Informações Penitenciárias, do Ministério da Justiça, o tráfico de droga assume a liderança, em dezembro de 2008 – aí já contabilizadas as condenações com fundamento no artigo 33, da Lei nº 11.343/2006 (a nova lei de drogas), do número total de presos no sistema penitenciário brasileiro, ultrapassando as condenações por roubo com emprego de arma (e/ou as demais situações previstas no art. 157, § 2º, do Código Penal).
Um ano depois, dezembro de 2009, o tráfico não apenas continua sendo o responsável pela maior quantidade de presos, como também toma distância do segundo colocado no ranking do encarceramento brasileiro – que, em dezembro de 2009, computados os presos, condenados ou provisórios, e os destinatários de medidas de segurança, tanto de internação quanto de tratamento ambulatorial, de penitenciárias e carceragem da polícia civil de todas as unidades federativas, é de 473.626 (registrado, portanto, um aumento de 22.407 presos em relação ao ano anterior - pode-se observar que o número de prisões por tráfico, em dezembro de 2009 (91.037), constitui quase a quinta parte do número total de encarcerados do sistema (473.726). Esse incremento pode sugerir também – conclusão plausível, que após a despenalização do porte para consumo pessoal, modificação operada pela nova lei de drogas (art. 28, Lei nº 11.343/2006), ocorreu uma “migração”, para a coluna do tráfico (art. 33, ex-artigo 12), de condutas que antes, na vigência da Lei nº 6.368/76, seriam melhor classificadas pelo juiz criminal como porte para uso próprio (art. 16 da lei revogada). O fim da pena privativa de liberdade para o consumidor (art. 28, Lei nº 11.343/2006) poderia explicar uma certa resistência do julgador em relação à mudança legislativa, por conta de uma sensação de impunidade dela decorrente?).
A nomenclatura usada na tabela (roubo “qualificado” e “entorpecente”) é fiel ao texto original divulgado pelo InfoPen. Sabe-se, contudo, que a hipótese do § 2º, do art. 157, do CP, na forma técnica correta, é denominada de roubo com aumento de pena; e que a Lei de Drogas em vigor substituiu o termo “entorpecente” por “droga”.
O tráfico somente vai perder o lugar de campeão das prisões se o segundo colocado – roubo com aumento de pena (art. 157, § 2º, CP) – se somar ao roubo simples, ou ao furto simples ou qualificado.
Enfim, as propostas de redução ou eliminação do direito penal para o tratamento da droga não se conformam a um conceito dado de crime, mas, ao contrário, problematizam a premissa proibicionista, examinando os resultados colhidos até agora pela solução criminalizadora e beligerante. Não é absurdo pensar que, preso, o pequeno traficante poderá ter acesso aos grupos organizados em torno do negócio do tráfico, ou seja, subir de posto no mercado de trabalho das drogas, mas o principal motivo que, a meu ver, fundamenta o tratamento diferenciado ao pequeno traficante é a convicção de que o direito penal não vai conseguir acabar com o tráfico, porém, levado às últimas consequências da pretensão proibicionista, vai produzir uma estatística impressionante de encarceramento, deixando intacta a questão que está na raiz desse problema: não há como alcançar redução de uso com incremento de punição pelo tráfico.