Bomtempo
Supermercado
Beatriz Vargas
Ramos
Esse tipo de coisa, ao
contrário do que as pessoas pensam, não é incomum onde eu trabalho. Hoje faz exatos
seis anos, três meses e quatorze dias que estou na gerência do supermercado Bomtempo e já perdi a conta das vezes
que testemunhei cenas como essa. Coisas assim – como posso dizer? – patéticas. Há
outras cenas que são ridículas ou repulsivas ou lastimáveis. Hoje, por exemplo.
Pouco antes da hora de marcar meu ponto de saída, uma senhora de idade avançada
– coitadinha! – urinou ali mesmo na fila do caixa preferencial. Parece que a
pobre já não bate bem da cabeça, porque chorava desamparada e pedia colo à moça
que estava com uma criança pequena dentro de um “canguru”. Repare que eu
coloquei a palavra entre aspas, porque não estou falando daquele bicho saltador,
daquele que leva a cria numa espécie de bolsa que tem na barriga. Não. Estou
falando é de uma faixa de pano grande para carregar bebês. É como a tipoia que
os índios amarram nas costas ou nos quadris. Eu já vendi muito desse canguru
quando trabalhava numa loja de departamentos em Jacksonville, na Flórida, em
2005. Lá eles chamam de sling, baby sling. É como porta-bebê, sabe? Mas
eu já estou divagando... Tenho mania de fazer isso, vou mudando de assunto com
facilidade. Pois então, eu falava dessas cenas que vou colecionando sem querer
no meu dia-a-dia no trabalho. Essa senhorinha agarrou a moça e a derrubou no
chão com criança e tudo. Felizmente, ninguém se machucou. Tive pena das duas e da
criancinha que chorava assustada. Fico pensando como é que deixam uma idosa
nessas condições sair sozinha. Coitada. Mas já vi coisa pior acontecer dentro
do Bomtempo. Não estou me referindo a
furtos, que é coisa frequente. Tem gente que leva a mercadoria, por necessidade
e não tem como pagar. Minha obrigação é zelar para que ninguém leve nada de
graça, digamos assim, mas confesso que numa situação ou noutra vi o furto
acontecer e deixei passar. Quando falo de coisa pior também não estou
considerando discussões ríspidas ou palavras grosseiras que as pessoas trocam
por causa de uma coisinha de nada. Falo de outras coisas – como posso dizer? –
coisas feias mesmo. Teve um moleque de rua, por aí com quatorze anos, que
apanhou muito de dois jovens saradões. Tivemos que chamar o SAMU junto com a
polícia. Os seguranças da noite, Wandersson e Dedeco, intervieram e evitaram a
morte do garoto que ficou lá no chão desmaiado, coberto de sangue. A sorte dele
foi a ambulância chegar depressa. Quando a polícia apareceu os covardes já
tinham fugido. Naquele dia, muita gente tomou partido dos saradões. Gritavam
assim, “mata esse ladrãozinho safado!”,
“bate mesmo!”, “arrebenta!”. Eu fiquei na minha, porque não podia criar caso com
clientes da empresa, né? Tive que calar, mas isso me custou uma dor de estômago
terrível, como se eu tivesse engolido um tijolo quente. Mas acho que foi isso
mesmo. Eu engoli um tijolo quente. Engoli minha revolta, minha própria raiva. Não
podia botar pra fora. Tive que engolir. Segurei no estômago, foi uma coisa
física mesmo. Sabe com é, né? O pior foi que no meio daquela gente raivosa
gritando para os sarados matarem o menino, eu reconheci o Seu Taborda, um
assíduo frequentador do supermercado. Ele era um dos que mais berrava. Berrava
não, rugia. Transtornado. Parecia uma fera. Quem diria, Seu Taborda?! Com o
punho cerrado, a boca retorcida, a cara vermelha, babava de puro ódio. Fiquei
lá olhando pra ele e pensando, “quem
diria, hem, Seu Taborda, logo o senhor, um velhinho tão limpinho, arrumadinho, distinto,
do tipo cidadão-de-bem, fazer uma coisa dessas, Seu Taborda?” Ah! Se eu
ficar aqui contando os casos que tenho visto no Bomtempo essa conversa não termina hoje. Conversa é apenas um jeito
de dizer, né? Conversa mesmo não é, porque só eu falo. Sou o tipo de pessoa que
adora ter alguém com quem falar. Acho que é porque vivo só. Não tenho família e
os amigos são poucos. Aqui estou eu divagando novamente... Voltando à vaca
fria, como dizia meu pai, eu tenho muita história ruim pra contar desse Bomtempo. Devia se chamar Mautempo, isso sim. Teve um marido que
bateu na mulher dentro do banheiro do supermercado. Acredite, outro velho. Não
fosse Dona Angelina, a faxineira, ele tinha dado cabo da esposa naquele dia. Foi
Dona Angelina quem ouviu a gritaria e saiu atrás de socorro. Tem alguns casos
que eu nem gosto de contar. Prefiro não contar, para não ficar me lembrando. São
coisas que acontecem com os empregados do Bomtempo.
Todo tipo de maldade, exploração, preconceito, falsa acusação. E eu que ainda
trabalho pra essa gente?! Mandaram embora um antigo empregado, por justa causa,
e arrumaram lá alguém que testemunhou contra ele por furto de mercadoria no
depósito. Eu não sei se ele furtou ou não. O que sei é que o coitado cometeu
suicídio por causa de disso. Pior é que fui eu quem o demitiu. Cumpri a ordem
dos donos, não me cabia discutir. Do jeito que as coisas vão, não posso correr
o risco de ficar sem trabalho. Não sei se consigo outro. Olhe aí, eu disse que
não ia contar mais nenhum caso e acabei contando... Minha conclusão é que as
pessoas estão aceitando todo tipo de imposição, seja para ganhar algum trocado,
seja para manter o emprego. Ontem, eu li uma notícia tão absurda que custei a
acreditar. O título da matéria era o seguinte: “Quase 300 pessoas morrem de exaustão em contagem de votos na Indonésia”.
Eu bati o olho naquela frase e achei que era notícia falsa. Trabalhadores apuraram,
manualmente, por horas seguidas e em condições “exaustivas”, uma quantidade
enorme de votos. Faça a conta. Cada um dos 160 milhões de eleitores depositou
cinco cédulas nas urnas em 800 mil locais de votação. Quanto é que dá isso? São
800 milhões de papeluchos, não? Morreram 269 apuradores e 18 policiais. Outras
2.095 pessoas ficaram doentes por esgotamento físico e mental. E parece que a
apuração ainda não terminou. O governo irá compensar cada uma das famílias das
vítimas com 2.500 dólares. Os mortos estão sendo chamados de “mártires da democracia”.
Puxa! Não seria mais fácil usar esse dinheiro para garantir condições adequadas
ao trabalho dessa gente? Cruz credo! Qual é o limite de submissão das pessoas?
Bem, essa é minha última divagação. Tem gente que acha que esses tempos não são
nada bons. Pois eu penso mesmo é que a raça humana sempre foi assim. A
diferença é que hoje ficamos sabendo de mais notícias do que no passado, por
causa dessa coisa chamada de “aldeia global”. É como se o mundo fosse uma
aldeia, uma cidadezinha pequena em que todo mundo sabe de tudo em questão de
segundos. Assim como eu fico sabendo de tudo nesse supermercado. Bem, aqui
estou eu, em minha cadeira de gerente, filosofando, enquanto o Seu Taborda –
sim, ele mesmo, daqui posso ver muito bem – acabou de esconder uma garrafa de
vinho dentro do casaco.