sábado, 21 de janeiro de 2017

(Este texto foi publicado no Jota, em 24/06/2016)

A doutrina da escola neutra
Beatriz Vargas Ramos
Professora Adjunta da
Faculdade de Direito da UnB


- “Mãe! A professora falou que a gente deve lutar para construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ela disse também que devemos erradicar a pobreza, a marginalização, as desigualdades sociais e que não podemos aceitar os preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação.
- Ai, meu Deus! Sua professora é comunista!
- Não, mãe, esse é o artigo 3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Esse pequeno diálogo circula nas redes virtuais e revela, pela força expressiva do humor, que o senso comum dispõe de um conjunto de ideias pré-concebidas para a compreensão de qualquer objeto, alguma coisa, palavras, textos, situações. Revela também que senso comum não é sinônimo de bom senso. Demonstra mais, que nenhum pensamento escapa à ideologia.
O doutrinador mais perigoso é exatamente aquele que não se dá conta de que exerce doutrinação e, por fazer circular ideias “naturais”, acredita na “neutralidade” de sua prática inofensiva. Contardo Calligaris (Folha de S.Paulo,19/05/2016), aborda o projeto “Escola sem Partido”, a partir da proposta principal desse movimento, o rígido “controle sobre a transmissão de ideologias”. Ele propõe essa reflexão sobre o tema: “Como proteger as crianças contra as ideologias que se apresentam como jeitos ‘naturais’ de pensar? Como evitar que elas aceitem ingenuamente os clichês que são transmitidos como ‘naturais’? Receio que, retirando as ideologias explícitas (que podem ser combatidas, discutidas e recusadas), só reste para as crianças a ideologia do círculo da padaria, que é a mais perniciosa, porque parece ser o pensamento ‘espontâneo’ de ‘todos’.”
Seguidores da “Escola sem Partido” dizem que a escola pública brasileira se transformou em lugar de “doutrinação política e ideológica”. A solução estaria na prática da “neutralidade do ensino”. Para garantir a neutralidade, querem instituir princípios e estabelecer controles, inclusive o controle penal. Os defensores desse pensamento afirmam que os professores estão “fazendo a cabeça” dos estudantes, incutindo-lhes “as ideias e os valores do PT e do governo federal nos últimos anos”. Daí a denominação do movimento, na qual está embutido um juízo prévio, o de que a escola brasileira tem partido.
Trata-se de uma visão simplificadora da realidade do ensino e que acaba por ocultar os verdadeiros obstáculos ao alcance da meta da educação de qualidade. A “Escola sem Partido” nada tem de imparcial e a defesa da neutralidade carrega consigo uma categorização de conteúdos e práticas que nada tem de neutra, ao contrário, pressupõe uma (outra) ideologia. O movimento traz propostas de modificação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que já tramitam no Congresso, em Assembleias Legislativas de alguns estados, no Distrito Federal e nas Câmaras municipais. No centro dessas propostas está o controle sobre ideias consideradas de “esquerda”, ou seja, sobre tudo o que possa ir de encontro ao pensamento e aos valores conservadores. Alguns desses projetos chegam ao cúmulo de abolir o uso de palavras e expressões – o que abre a porta para outros banimentos sucessivos, quem sabe, de bibliotecas inteiras (como no Index Librorum Prohibitorum instituído no século XVI pela Igreja Católica). Proíbem a utilização de termos como “gênero” e “orientação sexual” e interditam disciplinas sobre educação sexual (PL nº 1.859/2015). Em poucas palavras, a proposta da “Escola sem partido” – como se houvesse um campo adversário defendendo uma escola “com” partido – é conservadora e de direita.
Em meio às proposições está o PL nº 8.099/2014, de autoria de Marco Feliciano (PSC/SP), que pretende a inserção do criacionismo nos conteúdos de ensino de todos os níveis. Está apensado ao PL nº 309/2011 que institui o ensino religioso como disciplina obrigatória nos currículos do ensino fundamental. O autor do projeto quer alterar o art. 33, caput, da Lei nº 9.394/96, para tornar obrigatório o estudo da religião – qual religião? – quando é a própria Constituição da República que estabelece a matrícula facultativa do ensino religioso (art. 210, § 1º). A norma constitucional, em harmonia com a liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI), proporciona a relação democrática entre Estado e religião. Pela mesma razão, o criacionismo, crença religiosa, não pode ser imposto como conteúdo de ensino. Ambos os projetos violam o princípio da laicidade do Estado, subjacente ao sistema constitucional em vigor, sobretudo no tocante à autonomia das políticas públicas em relação às regras religiosas.
Outro projeto, o PL nº 1.411/2015, do Deputado Federal Rogério Marinho (PSDB/RN), institui o controle penal, ao criar um novo crime, o “assédio ideológico”, punido com detenção de três meses a um ano e multa. Prevê aumento de pena para “professor, coordenador, educador, orientador educacional, psicólogo escolar” ou para quem “praticar o crime no âmbito de estabelecimento de ensino, público ou privado”. Concebido como crime contra a liberdade pessoal, traz a seguinte definição: “Expor aluno a assédio ideológico, condicionando o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou constranger o aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente”. Além da redação ruim, o texto é aberto e impreciso, propiciando um vasto arsenal de subjetivações e juízos morais que resultam fatalmente na insegurança jurídica. O direito penal não tem papel a cumprir no estrito campo ideológico e corre o risco de vir a ser mal utilizado e desviado à promoção pura e simples da caça às bruxas. Ademais, o ordenamento penal vigente, hipertrofiado, já possui normas incriminadoras suficientes para reprimir comportamentos atentatórios à liberdade e ao sentimento de dignidade pessoal. A pretensão de criminalizar o professor por algo como “assédio ideológico” nasce do sentimento de “perder o filho para o mundo” – note-se que a vítima é “aluno”, o que impede que o agente possa ser qualquer pessoa, como, por exemplo, o próprio pai. É a dificuldade de lidar com o fato de que o estudante tem direito a informações diferentes daquelas proporcionadas pelos pais e acesso a pensamentos distintos daqueles que os pais querem, eles próprios, impor aos filhos.
A lei já aprovada em Alagoas, estado líder em analfabetismo e possuidor do pior índice de desenvolvimento humano do Brasil, simplesmente veta a abordagem de temas que entrem “em conflito com as convicções morais, religiosas ou ideológicas dos estudantes ou de seus pais ou responsáveis”. Apelidada “lei da mordaça”, dispõe que os transgressores, se servidores públicos, estarão sujeitos a penalidades previstas nas normas administrativas aplicáveis. E para coroar a iniciativa, o movimento “Escola sem Partido” coloca à disposição dos pais um modelo de notificação anônima para denúncia desses professores-doutrinadores.
No PL nº 867/2015, de autoria do Deputado Federal Izalci (PSDB-DF), o movimento “Escola sem Partido” encontra perfeita tradução. O projeto está apensado a outras propostas semelhantes (PL nº 7.180 e nº 7.181 de 2014 e PL nº 1.859/2015). Nele figura uma regra quase idêntica àquela já mencionada na lei de Alagoas: “São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”.
A escola não tem e nem deve ter a função de doutrinar os estudantes. Precisamente por essa razão é que não se pode limitar os conteúdos e atividades aos temas que não estejam em conflito “com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis”. O conflito de ideias é inevitável, sobretudo numa sociedade complexa e plural. Doutrinação é exatamente a ausência de confronto entre as diferentes visões de mundo. A instituição do pensamento único passa pela censura sobre os conteúdos escolares e a pela instauração de temas-tabus. Ao contrário do que aparenta, a proposta é rigorosamente doutrinária. Não há escola sem liberdade de expressão, sem o exercício da desnaturalização de ideias e conceitos, sem a possibilidade de crítica. Além disso, a regra está em flagrante contradição com um dos princípios adotados no mesmo projeto, o “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”.

Em 1976, aos 15 anos de idade, estudante do primeiro ano do então chamado “segundo grau”, eu pedi à Professora de História que nos falasse do AI-5, o quinto decreto emitido pelo governo militar brasileiro (1964-1985). Ela respondeu que nada sabia a respeito do assunto e seguiu a aula, cujo tema era justamente o período de Kubitschek a João Goulart. Sabíamos, eu e boa parte dos colegas de turma, o motivo pelo qual ela nos havia negado uma resposta, estávamos em plena ditadura militar. Na mesma década de 70, Another brick in the wall, do Pink Floyd, que ouvíamos e traduzíamos fora das aulas de inglês, havia se convertido numa espécie de hino à liberdade de pensamento, contra a rigidez de uma educação conservadora e sem contato com o mundo fora da sala de aula. Em 1979, como caloura universitária, eu tinha a nítida sensação de acessar um universo virtual, ao entrar na Faculdade de Direito da UFMG. Naqueles tempos, o contato mais próximo que travávamos com as questões de ordem política, social e econômica brasileiras eram as sonolentas aulas da disciplina “Estudo dos Problemas Brasileiros”, quase sempre ministrada por algum professor carrancudo, amante da retórica tradicional e reprodutor da já mencionada “ideologia do círculo da padaria”. Hoje, 37 anos depois, diante dessa “doutrina da escola neutra”, tenho a sensação de estar no cinema para a estreia de uma nova obra e me dou conta de que já conheço o filme...
Sociedade punitiva, direito penal máximo e administração do excesso
Beatriz Vargas Ramos
Professora de Direito Penal e Criminologia
da Faculdade de Direito da UnB


No site oficial da empresa Umanizzare Gestão Prisional e Serviços S.A., responsável pela administração da rotina carcerária em oito unidades prisionais nos Estados do Amazonas e do Tocantins, lê-se que a sociedade anônima “nasceu como resposta às inquietudes frente às dificuldades do sistema penitenciário brasileiro e apresenta resultados concretos na transformação do indivíduo preso”. Diante do massacre brutal ocorrido no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, uma das unidades geridas pela empresa, a afirmativa soa como ironia cruel. É a realidade do cárcere brasileiro que explode quase ao mesmo tempo em que estouram os fogos dos festejos do ano novo, numa demonstração dura e fria da imensa distância entre intenção e gesto – como nos versos de Ruy Guerra. O nome da empresa encerra uma contradição em termos, pois não há humanização na prisão, assim como não são menos humanos os humanos privados de liberdade. Nem o crime é inumano. Seu conceito legal e as consequências jurídicas a ele atreladas resultam de um construto social, dependem de como determinada sociedade os define e os constrói.
Cinco dias depois do espetáculo de horror no Compaj, outra matança dentro do ambiente prisional toma conta dos noticiários dos primeiros dias do ano, desta vez, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (Pamc), em Boa Vista. Na página oficial do Poder Executivo local, a governadora Suely Campos anuncia o decreto de situação de emergência de 180 dias no sistema prisional e declara que o objetivo é “agilizar as obras necessárias para normalizar o funcionamento do sistema prisional e amenizar a situação de conflito”. Outra ironia, igualmente não proposital. O que se pode entender por “normalizar” o sistema prisional? A única coisa que se pode considerar “normal” no cárcere brasileiro – “normal”, aqui, no sentido de “comum”, “usual” – é a violação quotidiana dos mais elementares direitos do ser humano que está em situação de privação de liberdade. A governadora de Roraima se exprime de uma forma naturalizada ao adotar o verbo “normalizar”, referindo-se ao funcionamento do sistema prisional. Normalizar não é mais do que simplesmente restaurar a rotina carcerária pela neutralização pontual das revoltas episódicas dos internos, até que essa “normalidade” ultrapasse qualquer limite de contenção e seja novamente rompida por outra explosão de violência. Então, seguem-se novas medidas paliativas, de simples reversão ao statu quo ante, cumprindo-se um circuito infinito, um verdadeiro loop, um movimento do sistema penitenciário, ele próprio condenado ao eterno retorno à situação original, que está a léguas do que se poderia considerar razoável. Assim, todos os órgãos envolvidos, como peças da mesma engrenagem, cumprem a programação automática da grande “máquina de moer gente”.
                   Somados os dois massacres, o saldo é de 87 mortes, 56 delas em Manaus. Os relatos demonstram a extrema bestialidade das ações. Decapitações, esquartejamentos e eviscerações. O ano novo no sistema prisional é mais do mesmo. É a repetição perversa e macabra de fatos similares, desde o Complexo do Carandiru, São Paulo, em 1992, com 111 cadáveres de presos, passando pelo Presídio Urso Branco de Porto Velho, em 2002, com 27 mortos; pela Casa de Custódia de Benfica, no Rio de Janeiro, em 2004, com 31 mortos; pelo Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, em 2010, com 18 mortos; pela Penitenciária Estadual de Cascavel, em 2014, com 4 presos assassinados. Apesar do número inferior de mortes, o ocorrido em 2014 na penitenciária do Paraná se iguala aos demais episódios pela crueldade. Detentos foram lançados do teto do presídio a uma altura de 15 metros. Houve duas decapitações.
No momento em que este artigo era escrito, entre o sábado e o domingo, de 14 para 15 de janeiro de 2017, acontecia o terceiro massacre prisional deste início de ano, na Penitenciária de Alcaçuz, em Nísia Floresta, cidade da grande Natal, com 9 feridos e 26 mortos contados até o momento, todos decapitados. Alguns corpos esquartejados e carbonizados. Como nos dois casos anteriores, de Manaus e Boa Vista, as ações foram de presos contra presos e os relatos das autoridades locais dão conta da mesma situação de guerra entre facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas.
                   O que há em comum nesses e em outros tantos casos do sistema carcerário brasileiro, além da eliminação física e da brutalidade? Todos eles, apesar da alternância na autoria das chacinas – ora a cargo das forças policiais, ora a cargo dos próprios presos e outras vezes compartilhada por esses dois atores – têm em comum as péssimas condições prisionais, com destaque para uma delas, a superlotação carcerária. A superlotação é, sem dúvida, a fonte de todos os demais problemas e vícios de gestão – ou melhor, é a explicação para a ausência da própria gestão, isto é, da inexistência de gestão eficaz. Os dois casos revelam que o empresário do business prisional não é mais qualificado que o Estado para essa tarefa de domar o monstro que é a prisão brasileira – ou, em outras palavras, demonstram que o particular é tão desqualificado quanto o Poder Público, quando se trata de administrar o “inadministrável”. A grande “máquina de moer pobres”, sobretudo jovens e negros, desafia a razão e a sensibilidade. Diante da monstruosidade, primeiro nos diferenciamos – são eles os facínoras, nós não, como se o crime fosse algo extrínseco ao humano. Ao mesmo tempo, a monstruosidade exerce seu fascínio, porque precisamos dos demônios para afirmar nossa bondade, exatamente porque, saibamos ou não, em nós também habita uma besta-fera. Pensamentos que não ousamos confessar e atitudes que recalcamos são, segundo Freud, aquilo que justifica e preserva a norma e nos faz necessitados de bodes expiatórios que nos assegurem a subsistência dos prazeres e das transgressões. Às vezes, “a parte obscura de nós mesmos” – expressão de Elisabeth Roudinesco – que tentamos dissimular incessantemente, vem à superfície em forma de atos ou de linguagem. A propósito das cenas chocantes da violência em Manaus e em Boa Vista, uma autoridade do governo federal, Bruno Júlio (PMDB), então Secretário Nacional da Juventude, filho do ex-Deputado Federal Cabo Júlio, prestando adesão simbólica à violência de presos contra presos, escancarou toda sua bondade e externou sua íntima convicção de que “tinha era que matar mais” e “tinha que fazer uma chacina por semana”. A declaração, que um dos maiores veículos de comunicação do Brasil nomeou, de maneira camarada e eufemística, de “polêmica” (sic), gerou apenas o pedido de demissão do adepto da pena de morte à brasileira – pedido aceito por Michel Temer que, aliás, inseriu o episódio na ordem do “acidente”, embora “pavoroso”. O pior é que não faltarão aplausos ao bondoso secretário, assim como não faltaram juízes para anular a condenação dos responsáveis pela chacina do Carandiru.
De volta à superlotação carcerária, vale o registro de fato ocorrido em 1989, na Delegacia do Parque São Lucas, a 42ª DP, em São Paulo, capital, quando 50 presos foram trancados dentro de uma cela de 1 metro e ½ de largura e 3 metros de comprimento, uma das providências tomadas em razão de uma tentativa de fuga. Uma hora depois, aberta a cela, foram encontrados 18 mortos por asfixia. Em outro caso de horror que veio a público entre 2008 e 2009, numa Delegacia de Polícia da cidade de Serra, na grande Vitória (ES), a falta de vagas no sistema prisional foi justificativa para o confinamento de presos em contêineres, estruturas feitas de chapas de aço, pequenas e quentes, sem grades ou janelas, providas apenas de uma pequena abertura por onde a comida deveria passar. As prisões brasileiras ganham fama internacional por conta da superlotação, além dos maus tratos, violência e precariedades de toda ordem. Apontados como alguns dos cárceres mais problemáticos do País, o Presídio Central de Porto Alegre, o Complexo do Curado em Pernambuco e os Centros de Detenção Provisória em São Paulo, assim como Urso Branco e Pedrinhas, não são muito diferentes de outras prisões dos demais Estados da Federação.
Não há registro de rebeliões nas unidades da APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) e nem na penitenciária resultante da parceria público-privada (PPP) de Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte. Esta última foi construída e administrada por um consórcio privado, o GPA (Concessionária Gestores Prisionais Associados S.A.), concessionário da PPP, e funciona somente há 4 anos, desde janeiro de 2013. Nesses estabelecimentos, a lotação é adequada à quantidade de vagas disponíveis, às vezes até mesmo inferior ao número de vagas, e as fugas são raridade. São dois modelos de gestão completamente distintos entre si.
O segundo, a PPP de Ribeirão das Neves, segue o tipo tradicional de gestão penitenciária. O GPA é formado por 5 empresas, CCI Construções S.A., Construtora Augusto Velloso S.A., Empresa Tejofran de Saneamento e Serviços, N.F. Motta Construções e Comércio e o Instituto Nacional de Administração Prisional – Inap. O preso sai mais caro para os cofres do Estado de Minas Gerais do que nas prisões públicas, o que, em tese, possibilita a manutenção de infraestrutura adequada, automatização e câmeras de acompanhamento dos presos durante 24 horas do dia, prestação de serviços e atendimento às necessidades dos internos, além da remuneração das empresas do grupo. Os problemas que já foram apontados nesse tipo de gestão, além do risco genérico de abrir ao particular a exploração de uma atividade lucrativa diretamente dependente do encarceramento, têm a ver com a pouca transparência, com as dificuldades de fiscalização rotineira e eficiente por parte do Poder Público, a prestação de assistência judiciária pela própria empresa – e não pela Defensoria Pública – e a dificuldade de acesso dos familiares e visitantes em geral.
A APAC surgiu em 1972, em São José dos Campos, na prisão de Humaitá, como resultado do esforço de católicos voluntários da Pastoral Carcerária. Existem atualmente 100 unidades em funcionamento no Brasil e o modelo foi adotado em países da Europa, E.U.A e América Latina. A unidade de Itaúna, em Minas Gerais, em funcionamento desde 1986, é referência nacional e internacional desse tipo de gestão. A APAC atua como órgão auxiliar do Executivo e do Judiciário, na administração das unidades destinadas a presos já condenados pela justiça e na execução penal. Formalmente constituída como entidade civil de direito privado, não visa o lucro. O trabalho nas unidades de “recuperação” ou “reeducação” é prestado por membros da comunidade de forma voluntária e não remunerada. Não há qualquer tipo de vigilância, guaritas ou muros. Nenhuma força policial se faz presente nas unidades. Não há revista aos visitantes, mas armas ou drogas são de raríssima ocorrência. A ordem é rígida, baseada na autodisciplina, no senso de responsabilidade individual e coletiva e na solidariedade. O trabalho é a regra principal, condição primeira para a permanência no estabelecimento. Não há ócio, mas lazer, em horas determinadas do dia ou da noite. O trabalho interno, rotina de limpeza, manutenção, alimentação etc, é realizado pelos próprios “reeducandos”, que não usam uniformes, mas roupas comuns, e são chamados pelo próprio nome. A famosa cela do castigo ou solitária foi substituída por uma pequena capela. Um dos elementos fundamentais que regem o modelo APAC é a “jornada de libertação com Cristo”, de inspiração católica.
Não é possível, nos limites deste artigo, realizar uma descrição completa de nenhum dos dois modelos e muito menos uma análise aprofundada de seus métodos e resultados. Nem é esse o objetivo. Essa rápida apresentação serve para demonstrar que nenhum desses dois tipos de estabelecimento penal seria viável em um quadro de superlotação. Aliás, a ausência de superlotação é condição para o cumprimento de suas metas. Ambos se recusam a receber determinados condenados. A PPP seleciona seus presos, não aceita membros de facções ou estupradores – abriga atualmente 2.016 condenados nos regimes fechado e semiaberto, 4 em cada cela. A capacidade total prevista para o estabelecimento ao término das obras é de mais de 3.000 vagas – mas as obras para as novas instalações estão paralisadas há algum tempo. A APAC também é seletiva com os “reeducandos”. Recebe apenas aqueles que tenham algum vínculo familiar na própria comunidade onde se situam os centros de reeducação e que se comprometam com o programa de recuperação – o que implica adesão do elemento da religiosidade, entre outros critérios às vezes relacionados ao tipo de condenação ou ao perfil do condenado. Diferente da PPP, seus estabelecimentos são pequenos e abrigam, no máximo, entre 80 a 100 ou pouco mais “recuperandos”. Em Minas Gerais, por exemplo, em 2013, custodiavam cerca de 2.000 (10% do total da população carcerária daquele Estado). A PPP e as APAC, em conclusão, para a própria subsistência de seus métodos e a eficácia de seus procedimentos, atuam totalmente à margem da lógica da prisão em massa que impera no sistema penal brasileiro. O receio de transferência ou retorno ao sistema penitenciário comum é um importante elemento de conformação dos internos à regras desses estabelecimentos – o inferno das prisões públicas paira como uma ameaça de castigo à inadaptação. Nenhum dos dois estabelecimentos funciona no regime do excesso, ao passo que a população carcerária brasileira é a quarta maior do mundo. Relatório divulgado pelo CNJ, Conselho Nacional de Justiça, dá conta de que o número total de presos no País, em junho de 2014, era de 563.526. Nos termos do relatório, cuja fonte direta é a consulta aos juízes responsáveis pelo monitoramento do sistema carcerário nos 26 estados e no Distrito Federal, contabilizadas as prisões domiciliares, o total de pessoas presas atinge 711.463, situação em que o Brasil alcança a terceira posição no ranking mundial de prisões. Se fossem cumpridos todos os mandados de prisão em aberto – 373.991, dado do Banco Nacional de Mandados de Prisão –, o total de presos saltaria para 1.085.454 (um milhão, oitenta e cinco mil, quatrocentos e cinquenta e quatro).
As penitenciárias públicas brasileiras recebem a cada dia uma enormidade de presos, condenados ou não, além daqueles que são recusados pelas instituições antes mencionadas. O rigor retribuicionista e a mentalidade punitivista, do legislador e do juiz criminal, e que orientou, entre outras leis penais, o tamanho da privação de liberdade para o tráfico de drogas, sem critérios objetivos para a distinção entre usuário ou tipos de traficante, desde o grande até o micro, conduz não somente à superlotação, mas também à longa permanência dos condenados no ambiente prisional. De dezembro de 2008 até junho de 2013, o tráfico de drogas é responsável pelo maior número das prisões do sistema penitenciário, se considerados os principais delitos patrimoniais de forma isolada (furto e roubo, simples ou qualificados).
No mesmo período em que o número total de prisões cresceu 149,83% (2000/2013), a taxa de crescimento da prisão de mulheres alcançou 225,17% (10.112 presas em 2000 e 32.882 em 2013) – ou seja, em 10 anos, o número de mulheres presas por tráfico mais do que triplicou no Brasil. Nos anos de 2008 e 2009, o tráfico de drogas representou 59% do total do encarceramento de mulheres. Em 2008, do total de 18.366 mulheres presas em todo o território nacional, 10.767 estavam condenadas ou respondendo a processo por tráfico, contra 7.599 mulheres condenadas ou respondendo a processo por todos os demais delitos somados (furto, roubo, latrocínio, homicídio, crimes sexuais, crimes previstos no estatuto de desarmamento e outros). Em 2010, são 5.103 mulheres presas por delitos patrimoniais (todos somados) e 14.643 por tráfico, inclusive o internacional.
O Brasil tem hoje mais de 300 presos por 100 mil habitantes. Em 1992, essa relação era de 74 para 100 mil. Entre 1990 a 2012, o número de presos provisórios cresceu 1.334% e o de definitivos 330%, um aumento de 14 vezes no primeiro caso e de 4 vezes no segundo. Com base em levantamento realizado pela WPB – Word Prison Brief, a pedido da BBC Brasil em Londres, no período que vai de dezembro de 1992 a junho de 2012, houve um aumento de 380,5% no número total do encarceramento e de 289,2% na proporção de presos por 100 mil habitantes. Ainda de acordo com o relatório da WPB, entre 2010 e 2012, o nível de crescimento da população carcerária brasileira foi inferior apenas ao do Cambodja – 678% de 1994 a 2011 – e pouco menor do que o de El Salvador – 385% de 1992 para 2011.
A extraordinária expansão do sistema prisional é diretamente proporcional à sua ineficácia, à deterioração das condições carcerárias e às violações quotidianas de direitos. Seu crescimento igualmente não correspondeu ao decréscimo da violência e das taxas de criminalidade. Não há demonstração empírica de que a privação de liberdade seja absolutamente necessária e adequada em todos os casos que respondem pelos maiores índices de lotação das prisões – como o furto, o roubo sem emprego de violência e o tráfico de drogas. Também não há demonstração de que a melhoria da segurança pública depende da ameaça do castigo penal ou que a sociedade será melhor se os recursos públicos forem destinados à construção de centenas de presídios.
As propostas do atual Ministro da Justiça para responder os problemas da crise do sistema prisional brasileiro, que nesse campo se orienta por conceitos e compreensões que não se distinguem do senso comum, embora sejam até do agrado de uma maioria leiga, desinformada e acrítica, são, de um lado, como os esforços para “enxugar o gelo” e, de outro lado, como “lenhas que alimentam a fogueira”. Se as autoridades dos três Poderes da República, sobretudo o Poder Legislativo, a quem compete formular o programa criminal, não interromperem o loop, não tiverem coragem e determinação para colocar freio à fábrica de condenações em série que se instalou no País, todas as “soluções” serão meramente paliativas – a não ser que optem por murar o País inteiro, transformando o Brasil em um gigante carcerário, instaurando a ordem punitiva e substituindo o Estado Democrático de Direitos pelo Estado Policial.
Dizem que para conhecer melhor a uma determinada sociedade, é aconselhável começar pela visita às suas prisões. A violência no sistema penal diz muito sobre a sociedade brasileira, punitiva, preconceituosa e racista. Qualquer mudança no sistema penitenciário passa pela modificação do modo de pensar as relações sociais e as formas de solucionar os conflitos, com maior preocupação com a vítima e com respeito à dignidade humana de todos, presos ou livres, policiais ou não. Sim, respeito, não amor ao próximo. Esse, também segundo Freud, é o mandamento mais difícil de ser cumprido. Se não conseguimos amar a todos – é difícil amar o Bruno Júlio, ou o Bolsonaro, ou o integrante de uma facção criminosa – podemos, ao menos, tentar nos respeitar uns aos outros.

 (Uma versão mais enxuta desse texto foi publicada no Jota, no dia 20/01/2017).