quarta-feira, 16 de janeiro de 2019


Vontade de mar

Houve uma época em que o mar não importava tanto. No dia-a-dia da vida de trabalho duro da fábrica e no intervalo entre uma e outra jornada, descontado o percurso interminável do transporte ruim, consumida pelo sono e pelo cansaço, não lhe sobrava o luxo do tempo para pensar. Nos domingos solitários, com o dinheiro contado, se dedicava a conhecer um pouco mais da cidade grande, longe de sua terra. Nem seria preciso dizer, tinha nascido no litoral, num povoado de pescadores, como seu pai, onde a pobreza castigava e só fazia aumentar. Havia crescido junto com o irmão mais velho que partira em busca de trabalho na capital. Um dia chegou sua vez. Despediu-se do pai e da mãe, não haveria outro abraço. De vez em quando, uma carta, até que não chegou mais nenhuma. E veio o dia em que a última carta foi devolvida – “destinatário ausente”. Aconteceu no ano em que foi demitida da fábrica e daí em diante só conseguiu emprego em casa de família. Depois veio o dia em que não voltou mais ao trabalho, foi o dia em que sentiu vontade de mar.
A água toca, agradavelmente, e balança o corpo. O cheiro forte do mar, o gosto do mar. Somente a mão esquerda se ergue e tateia em busca do frasco deixado sobre a beirada da banheira. Banheira velha e carcomida, de onde, agora, se recordava do povoado, esquecida da pobreza daquela vida de antes. A verdadeira pobreza é ausência de mar.
Sussurra uma voz de dentro:
- “Se abrires os olhos...”.
- “Eu sei”, responde em pensamento.
- “Amanhã o encontrarás, espera e o terás”.
- “Não. É hoje o dia”.
A mão toca o frasco que escorrega e cai no piso azulejado e é preciso abrir os olhos para encontrá-lo. Afasta a cortina de plástico, vira o corpo um pouco mais e estica-se até conseguir apanhá-lo. Quase flutua na água tíbia. Respiração calma, calculada. Era noite escaldante de verão com lua crescente a meio céu. No banheiro, à luz de uma única vela, é como na infância de mar e estrelas. Tinha gravada na memória a imagem de constelações que distinguia a olho nu. O primeiro desafio era encontrar, em meio à aparente confusão de muitos pontos brilhantes, as estrelas enfileiradas, as Três Marias, como os pescadores lhe haviam ensinado. Ali, nesse mapa rudimentar, e de olhos fechados, traçava uma linha reta, da direita à esquerda, e subia até encontrar a estrela amarela, cujo nome, se ela o conhecesse, teria gostado de pronunciar. Era Aldebarã, no olho esquerdo do touro celeste. Ela seguia intuitivamente o caminho secular ao encontro de Touro, a partir dos três pontos do Cinturão de Órion. E mais acima, ainda em Touro, um conjunto de brilho intenso, onde se demorava até conseguir enxergar todas as sete estrelas que não sabia nomear. Eram as Sete Irmãs, as Plêiades, que ela, em sua própria mitologia, chamava de Seichu.
Uma aragem abranda o calor da noite e, sob a água, ouvem-se as batidas surdas, ritmadas, do coração.
De volta à posição anterior, olhos fechados, engole dois comprimidos. “Destinatário ausente” – pensou. Um suspiro profundo e o cheiro forte de desinfetante que vinha do ralo, junto ao cano da pia – tinha lavado cuidadosamente o banheiro antes da imersão. Só teve um namoro, mas durou tão pouco que nem tinha deixado muito do que se lembrar. Do nome do moço ela se não se esqueceu, Aquernar, Akhir al Nahr, o “fim do rio”.
Abre de novo a torneira e ergue as pernas dobradas, de modo a colocar os pés apoiados naquela extremidade e impulsiona de leve o corpo até a cabeça tocar o lado oposto da banheira. É um barco à deriva, solto no mar, no alto mar, sem orientação, sem bússola nem sextante, invisível a toda criatura do mar, da terra ou do céu, inalcançável para qualquer sistema de posicionamento global. Ninguém sentirá sua falta. Ninguém.
Leva o frasco à boca. Sem hesitação, mas sem pressa, vai engolindo os comprimidos todos. Começa a ouvir as ondas batendo na areia, a banheira transborda. As estrelas vão sumindo, enquanto o céu vai-se clareando como se fosse amanhecer. Vênus ainda resiste, mas será por pouco tempo. “Dorme”, sussurra de novo uma voz de dentro. Ela sorri. O sono vai chegando aos poucos, a cabeça pendida acima da água abundante e, imersos, tórax e ventre e pernas e braços. Naquela hora alguém liga o rádio, uma criança chora e, em seguida, ouve-se um rumor atarefado de panelas em alguma cozinha próxima. Pela porta aberta, entra o vento que de tão leve não pode mover a cortina de plástico azul de estampas indecifráveis à luz da vela prestes a se consumir – seriam ampulhetas ou talvez conchas abertas... como asas...
Agora tudo é silêncio e o mar clorado inunda o piso.

Beatriz Vargas Ramos – Oficina de Escrita – 26/02/2018


Sem pressa

Procurava pelo lugar como o caminhante do deserto busca um oásis. A porta, lilás de maçanetas brancas, estava entreaberta, mas não havia dúvidas de que se tratava do espaço feminino. A plaquinha fixada à entrada trazia a gravura envelhecida de uma jovem de perfil, cabelo curto, a Chanel, segurando entre os dedos uma longa piteira. Luz acesa. Movi a porta devagar, com cuidado para não surpreender uma possível ocupante distraída. Não havia ninguém. Tranquei a porta e me acomodei sobre o assento branco, limpo e macio do vaso sanitário lilás. E dali, daquele trono que me pertenceria pelo tempo necessário, pude observar ao meu redor, enquanto reduzia o peso de algumas taças do último Torrontés Colomé daquela noite. Não tinha mais pressa. A mesa, agora, estaria bem mais próxima do banheiro.
Banheiro grande. Um basculante redondo na parede à minha direita, alto o suficiente para afastar espiões, franqueava a passagem ao ar e aos ruídos – os de fora e os dentro. À minha frente, a parede sem azulejos, pintada da mesma cor lilás, com dois quadros sem moldura alinhados na horizontal. No primeiro, Super Man e, no segundo, Homem Aranha. De costas um para o outro, sentados em privadas iguais, com caixa de descarga acoplada. Os dois com jornal em punho e calças arriadas – quando foi que trocaram seus colantts por duas peças? Na parte inferior das gravuras, letras engraçadas traduziam a moral da cena: “Não tenha pressa, o mundo pode esperar”.
Abaixo dos super-heróis, a pia instalada em bancada ampla de mármore branco, toalhas de pano à direita e do outro lado um frasco de sabonete líquido alaranjado. Perto dele, toalhas de papel dentro de uma cesta de vime com fitas cor de rosa. Abuso de lilás e rosa. Um copo de plástico amaçado e caído ao pé do cano que descia da pia até bem rente ao chão. À minha esquerda, um espelho comprido de madeira entalhada e um vaso de barro bojudo de onde se erguia uma palmeira de tamanho mediano, de um tom verde tão profundo e uniforme que me pareceu artificial. No teto, um lustre em forma de flor. Duas arandelas gêmeas de cada lado da pia. Luz fraca, amarelada.
Foi no momento em que me levantava para tocar a palmeira que eu a vi. Arrastava-se em direção à fresta da porta. Procurava a saída, com certeza, e naquele instante calculei que talvez pudesse voltar, aterrorizando-me. Esteve ali o tempo todo e eu não a havia enxergado. Recuei até o fundo da parede à direita, a do basculante, sem tirar os olhos do bicho asqueroso. Lento, meio tonto, tinha o abdômen parcialmente esmagado e deixava um rastro fino de baba escura. Ainda mais escura no contraste com o piso de porcelanato branco. Tive ânsia de vômito.
O basculante aberto, de repente, me pareceu ameaçador – outras baratas poderiam entrar por ali, voando. Tentei fechá-lo, mas tinha agarrado. Só aí notei que o vidro estava quebrado. Fui até a pia, esgueirando-me pela parede, olhos fixos na Periplaneta. Foi então que ela parou. Por um momento, estacionada, até a fazer um movimento rápido e ameaçador de meio círculo e, novamente, estancar em linha paralela com a base da porta. As antenas se mexiam rapidamente e tive certeza de que já tinha minha localização exata. Quis gritar. Demorou algum tempo para que eu agarrasse uma das toalhas de pano. Planejava arremessá-la sobre a criatura, quando notei que ela já não se movia mais. Havia se debatido na mesma posição até estacionar por completo.
Um cheiro de dama da noite invadiu o ar que entrava pelo basculante e a baba escura se transformara em mercúrio prateado. Foi quando pude ouvir as três batidas na porta.
Beatriz Vargas Ramos – Oficina de Escrita – 18/02/2018

Papo de advogado nº 2

José Pacífico

A rodoviária fica no mesmo nível da estrada e, de lá, vejo a cidade incrustrada naquele trecho da Serra do Espinhaço. A visão é apaixonante. Ladeira abaixo, escorrega o casario branco de telhados vermelhos. Copas repolhudas de árvores bem distribuídas entre os quintais. Também dali, levantando os olhos à altura da serra, posso ver o pico do Itacolomi – o curumim feito de pedra, filho da pedra grande. Cidade de muitas igrejas, minas e museus, onde vejo mortos passeando pelas ruelas de pedra. E não são zumbis. São homens, mulheres e crianças mesclados de tal modo aos outros transeuntes que nem seria possível reconhece-los se não fosse pelas vestes antigas, os adereços, seus modos, seu olhar. Ah, como me olham! Às vezes sorriem. Eles não falam, apenas gesticulam, mas sem afetação. Indicam algum caminho, me apontam uma casa, um objeto. Em Ouro Preto as almas estão por todos os lugares.
Cheguei pela manhã, quase às oito horas. Desci do ônibus carregando minha bolsa a tiracolo e a pasta de couro falso com os documentos do caso. Meu encontro com o delegado de polícia estava marcado para as nove e meia, de modo que dava tempo para comprar a passagem de volta. Trazia comigo o alvará de soltura do cliente, José Pacífico, estudante de geologia. Por causa de um vaso de maconha exposto na janela do “Hospício”, no Centro de Habitação Estudantil, o garoto tinha sido preso em flagrante por tráfico. Habitava uma cela na cadeia local há exatos 8 meses e 23 dias. Eu vinha otimista com a perspectiva de sair da delegacia naquele dia junto com ele antes da hora do almoço. Talvez “meu” alvará chegasse antes que o documento expedido pelo tribunal na noite anterior. Naquela época, era comum que os advogados levassem os alvarás pessoalmente ao delegado.
Desci a pé até a Praça Tiradentes e parei no Café Ópera. Um cheiro delicioso de bolo no forno e o gosto do pão quentinho untado de manteiga e geleia de jabuticaba. Era outubro. Naquela hora, começavam a abrir as portas do comércio. Pessoas surgindo de não sei onde, varriam a frente das lojas, recolocavam as peças de pedra sabão sobre o parapeito das janelas, penduravam as placas de volta ao mesmo lugar de ontem. Nas calçadas estreitas, espalhavam-se grandes balaios de vime e mesinhas de artesanato. Panos coloridos sobre as grades das varandas, cestas de flores, mulheres janeleiras com lenço nos cabelos. Ali me demorei o tempo necessário para não perder a hora marcada. Depois, tomei a Rua Direita e segui para a delegacia, perto do chafariz. Lá, um aglomerado de estudantes veio ao meu encontro. Eu havia falado por telefone com um dos colegas de república do Pacífico, o Caio Freitas, e ele tinha organizado uma recepção para o amigo, ali mesmo, no meio da rua, do lado de fora da “delega” – como diziam. Agora ele me trazia uma notícia estranha.
- “O Pacífico não está na cela. Não quiseram me dizer onde ele está”.
Entrei meio ofegante na pequena sala de paredes grossas. Esperei por mais de uma hora a chegada do doutor Ribeiro, o delegado-chefe. Apresentei o alvará. Ele disse que eu teria que aguardar o retorno do Pacífico. Ninguém sabia dizer ao certo o que tinha acontecido, mas o rapaz, desmaiado, fora levado às pressas, na noite anterior, para a Santa Casa de Misericórdia. Insisti com o delegado.
- “A ordem de soltura está em suas mãos, não vou sair sem meu cliente”.
Doutor Ribeiro era um sujeito muito branco, de meia idade, encorpado, testa oleosa, olhos azuis. Antipático. Pediu que trouxessem água e café. Depois de alguns minutos, e sem me olhar diretamente, respondeu, soletrando:
- “Se e-le não es-tá a-qui, não pos-so li-be-rá-lo”.
O telegrama do tribunal chegara à delegacia na noite anterior e, mesmo assim, as pesquisas de praxe – outras possíveis ordens de prisão – nem mesmo tinham começado. Voltei à rua para avisar ao Caio Freitas o que estava acontecendo. Outros estudantes haviam se juntado ao grupo original. “Hospício”, “Calabouço”, “Adega”, “Necrotério”, “Sinagoga” e outras tantas repúblicas ali estavam bem representadas. Nessa altura, o delegado já havia concordado em tomar as providências de soltura. Da sala do doutor Ribeiro fui para a recepção, onde fiquei esperando a ordem. Na saída, o delegado perguntou:
- “A senhorita não prefere trabalhar com direito de família, doutora? Delegacia não é lugar para mulher”.
Dessa vez ele me olhou com seus olhinhos miúdos de roedor. Levantou a mão direita para o gesto de despedida. Eu peguei aquela mão no ar e apertei com segurança.
- “Bom trabalho, Dr. Ribeiro. E obrigada”.
Segui de viatura para a Santa Casa, na companhia de dois policias. Caio Freitas seguiu a pé com o restante da turma. Era uma procissão de estudantes. Encontrei José Pacífico algemado numa cama de enfermaria. Com ele, outro policial sentado ao lado da cama. Minutos depois, eu e o cliente estávamos sós. Todos os leitos vazios. Uma enfermeira magricela acabava de deixar a sala. Ele estava bem, apesar do rosto machucado. Caio e os outros amigos já deveriam ter chegado ao hospital. Em alguns minutos José Pacífico teria alta. Olhei enternecida aquele rapaz de cabeleira castanha e bochechas de adolescente. Ele era seis anos mais jovem que eu. Perguntei se não tinha fome. Ajeitou-se na cama e com uma voz pedinte me falou:
- “Doutora Bia, a minha plantinha, o meu vaso, sabe dizer onde foi parar?”


Beatriz Vargas Ramos

Oficina de Escrita – 05/03/2018


Rosa

Beatriz Vargas Ramos
Começava seu exercício pela escada. Do quinto andar ao térreo são oitenta e sete degraus bem contados, cinco vezes por semana, às oito da manhã. Tarde o suficiente para encontrar movimento nas quadras. Cedo o bastante para fugir do calor. Às sete horas da manhã – segundo Teia, a diarista – Rosa já teria tomado as duas xícaras de café sem leite e sem açúcar. Teria comido uma laranja – ou uma fatia de mamão, ido duas vezes ao banheiro e lido ao menos dois dos cinco jornais diários – os outros chegariam por volta das dez horas da manhã. Rosa vivia só. Muitos namoros, três casamentos. Filhos ela não quis. Deve ter fechado a porta do apartamento pouco antes das oito e metido as chaves no bolso da bermuda jeans. Detestava essas calças sintéticas de malha agarrada ao corpo. Vestia também uma camiseta branca de algodão. O zelador – cujo nome agora não me vem à memória – recolhia o lixo no quinto andar. Contou que ela desceu a escada às oito horas em ponto. No térreo, conversou com Élio, o porteiro, sobre o aumento da taxa de empréstimo. – “Malditos banqueiros, são eles que mandam no mundo!”. (Compreendo bem a indignação dessa frase. Justo naquele dia os jornais anunciavam a queda da Selic). Élio ainda falou de um comentário dela sobre uma viagem. De fato, em sua mesa de cabeceira, encontrei as passagens para San Miguel de Allende. A viagem estava marcada para dali a um mês. No bilhete de volta, a data de 31 de janeiro de 2012. Eu não sabia nada sobre a viagem.
Ao sair do prédio, ela teria cortado a calçada em frente para entrar no lote retangular, um pedaço gramado e plano da grande savana que é a cidade. Conheço-o bem. Morei dez anos nessa mesma quadra. Eu atravessava o túnel aos domingos para pedalar no Eixão. Esse lote é feito de enormes espaços vazios. Mas também de arbustos e árvores, mais de quarenta, entre nativas e adaptadas. Rosa gostava das árvores do cerrado. Ela ficava passeando, silenciosa, entre aquelas esculturas retorcidas. E seus olhos brilhavam. Seus olhos de abismo. Seus olhos, meu abismo.
Entrei no terreno com a intenção de refazer o que poderia ter sido seu caminho naquela manhã. Sob a copa frondosa do pequizeiro solitário, uma coruja vigiava o ninho escavado na terra que forma ali uma pequena elevação. “Bicho estranho” – me olhava como se guardasse segredos. Com quinhentos passos, pouco mais ou pouco menos, cheguei à extremidade norte do terreno. Ali, em outubro de 1979, plantamos um ipê amarelo. Não vingou. Aquele foi o ano em que Rosa e a tia se instalaram na quadra. Antes, seus pais se exilaram em Santiago. Ele morreu na prisão do Estádio Nacional do Chile no final de 1973. O corpo nunca foi encontrado. “Jogado no rio Mapocho, como muitos outros” – Rosa dizia. A mãe, que no mesmo ano conseguira sair de Santiago, morreu de tuberculose na capital da Suécia, em 1975. E Rosa: – “Como é que alguém pode morrer de tuberculose em Estocolmo?!” Com a morte da tia, sobravam alguns parentes em Minas e em São Paulo. Entre todos os seus amigos de infância, eu era o único que a encontrava com alguma frequência, apesar da falta de tempo, da família, da correria do trabalho. Juntos, tomamos alguns porres fenomenais, escondemos maconha em jardins alheios para escapar da polícia, tramamos revoluções que jamais aconteceram. Também nos amamos (tenho a impressão de que eu já disse isso...). Ao nosso modo, éramos unidos, apesar de separados. Ah, seu eu fosse Rimbaud, faria um poema para a minha Rosa! Por que não fugimos para Paris em 89?
Daquele ponto, ela teria virado à direita e seguido de costas para o oeste, descendo a calçada. Eu sei disso, porque Dionísio, o rapaz do caixa da casa lotérica, descera do ônibus no Eixinho Leste e passara por ela naquele lugar. Ele viu quando Rosa atravessou a via interna e alcançou a quadra abaixo. Disse-me que daí ela teria seguido pela esquerda, no sentido sul-norte. Às oito horas e vinte minutos, encontraria Apolo, seu antigo professor de clarineta – ele confirmaria a hora desse encontro. Cumprimentaram-se. Conversaram por alguns minutos. Nada de incomum. Às oito e meia, Rosa passaria por Selene, outra vizinha da quadra – uma solteirona varapau de sessenta anos de idade que ama a seus Lulus da Pomerânia sobre todas as coisas. Eu estava agora no que pode ter sido o segundo trecho da caminhada de Rosa. Uma longa trilha em linha reta, entre a sequência de prédios e a via interna, cercada de árvores pelos dois lados. Nelas, uma parte do passado esculpido a canivete. Os mastros de pau-ferro traziam nossos registros adolescentes de flechas e corações. Mais ou menos às oito e meia, ela deve ter alcançado o jacarandá – de onde, agora, o passarinho me contava: “Bem-te-vi!”. A cidade estava desperta. Um dia como outro qualquer. Monotonia do céu de agosto. A saudade é azul.
Em torno dos quarenta minutos de caminhada, ela deve ter pegado o caminho de volta, por causa do horário de trabalho. É esse o provável trecho final de seu percurso. A trinta e cinco passos do final da calçada para dentro, sobre um canteiro de caliandras, encontraram uma sacola de pano. Dentro, a carteira de identidade da Rosa. Selene foi a última pessoa a cumprimenta-la naquela manhã. Disse não ter reparado nada de estranho. Não existe qualquer outro registro de sua presença em nenhum outro lugar naquele dia.
Algumas pessoas falam que Rosa queria ir embora. Outras acreditam que ela foi sequestrada. Apolo sustenta que foi abduzida. Eu gosto de pensar que tirou férias sem aviso. Sonho com ela atravessando um portal luminoso no meio das aroeiras que mais a impressionavam. O que me dói é não saber o que lhe aconteceu. Retornei muitas vezes aos mesmos lugares, com a mesma esperança tola de achar alguma pista ou, quem sabe, de vê-la caminhando de volta, como num túnel do tempo, em minha direção. Por semanas seguidas esquadrinhei os troncos das árvores em busca de alguma mensagem escrita. Um dia, num daqueles troncos lisos, bem em frente ao local onde morava Rosa, encontrei um poema inteiro. Eu o copiei na última folha do livro que levava comigo:
A menina que fui – conheço-a, é claro.
Tenho umas fotos de sua vida breve.
Sinto certa pena de alguns versinhos.
Lembro-me de alguns eventos.
Mas, para que este que está comigo ria e me abrace,
recordo só uma historinha:
o amor de infância daquela feinha.
[Riso]”.

Pesquisei. O poema é de Wislawa Szymborska, mas foi a Rosa quem o gravou. Disso eu tenho absoluta certeza.                        (Oficina da Escrita – 02/04/2018)