sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

O nome da lei (esse artigo foi publicado na Carta Maior).


O nome da lei
Beatriz Vargas Ramos
- Professora Adjunta de Direito Penal e Criminologia
na Universidade de Brasília - UnB, nos cursos de
Graduação e Pós-Graduação em Direito
- Mestre em Ciências Penais pela UFMG
- Doutora em Direito pela UnB
- Coordenadora do CEDD/UnB (Centro de Estudos
em Desigualdade e Discriminação)
- Membro do NEVIS/UnB (Núcleo de Estudos
sobre Violência e Segurança)
- Membro do GCCrim/UnB (Grupo
Candango de Criminologia)
- Membro da Comissão Anísio Teixeira
de Memória e Verdade da UnB
- Membro fundador da ABJD (Associação Brasileira de
Juristas pela Democracia)
- Ex-conselheira do CNPCP/MJ (Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça)

Recentemente, foi apresentado a governadores e ao Congresso Nacional o anteprojeto de lei batizado de anticrime, de iniciativa do Ministério da Justiça. Trata-se de proposta de modificação de leis penais, no sentido amplo – direito penal material e processual e normas de execução penal. Segundo o ministro, as medidas representam “grande avanço”. Vêm para cumprir a promessa de campanha de Jair Bolsonaro, para “endurecimento” da resposta penal ao crime organizado, ao crime violento e à corrupção. Sérgio Moro fez questão de demarcar o que entende ser o diferencial da proposta: “Não vimos nenhum projeto consistente, nos últimos governos, em relação a essas atividades”. Reconhece que “houve avanços” e menciona o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), cujo “grande mérito” atribui a Raul Jungmann. Nada, no entanto, comparável ao seu pacote anticrime, “diferente do que houve no passado”. Desde o momento em que aceitou o convite de Jair Bolsonaro para ocupar a pasta da Justiça, o ex-juiz de Curitiba havia manifestado a intenção de elaborar “uma série de propostas legislativas para melhorar o quadro legal contra a corrupção e o crime organizado”. Ainda em novembro de 2018, antecipava o objetivo de “reformas simples” para serem aprovadas em tempo breve. O pacote anticrime, no entanto, é simples demais para enfrentar o problema da criminalidade e da violência e complicado o suficiente para ser aprovado sem maior análise e discussão. Contém, para começo de conversa, impropriedades jurídicas, violações diretas a normas constitucionais, é mal redigido, inventa novas categorias de acusados ou deturpa conceitos consolidados do campo (como é o caso de “criminoso profissional ou habitual”). E ainda mais preocupante, surfa na onda populista, incentivando a crença ilusória de que o problema complexo da criminalidade, da violência, da segurança pública pode ser resolvido com simples reformas na legislação penal. A começar pelo nome da proposta, anticrime, como se assim não fosse todo o arcabouço penal. O nome da lei induz o pensamento de que as regras penais em vigor, cujos limites o juiz Sérgio Moro excedeu muitas vezes na direção da Lava Jato, é pró-crime. Nome sensacionalista, no característico estilo de promoção do salvacionismo penal. Moro sempre foi um defensor de causas, mas, nesse terreno, é bom desconfiar dos arroubos populistas e jamais acreditar em respostas simples. Não existem respostas simples para quem realmente quer mudar o quadro de violência e exclusão em que se transformou a segurança pública no Brasil.
O anteprojeto de Sérgio Moro é, ao contrário do que propagandeia, mais do mesmo. É a reconfiguração do histórico modelo dominante e persistente no País – centrado na prisão e na militarização das polícias ostensivas. Nele, tudo orbita em torno da prisão, reforçada como a principal resposta de controle do crime, verdadeiro upgrade repressivo-punitivo e, nesse sentido, realmente um “avanço”. E isso no Brasil, o terceiro país que mais prende no mundo, onde o abuso da pena privativa de liberdade e da prisão provisória, com a consequente superpopulação carcerária, tornaram os presídios “inadministráveis” pelo Estado. Onde as condições sub-humanas e as violações quotidianas de direitos converteram o sistema prisional em “estado de coisas inconstitucional” – nos termos em que proclamado pelo Supremo Tribunal Federal. Isso, convém repetir, quando o aumento impressionante dos números prisionais não correspondeu à redução da violência e da criminalidade. Essa deveria ser a razão definitiva para que a sociedade brasileira, no mínimo, desconfiasse das promessas do autor do pacote anticrime. Compreensível que enquanto juiz criminal, detentor de conhecimentos técnico-legais e ocupado em seu fazer diário de sentenciar – e, no seu caso, obcecado pelo “combate” à corrupção, a principal bandeira do “partido do judiciário” nos dias atuais – concebesse medidas visando ao aumento do poder discricionário do juiz criminal, voltadas à redução do seu volume de trabalho (entre outras, a plea bargain) ou à facilitação da “mão pesada” – em outras palavras, da ampliação do poder punitivo. Inaceitável, contudo, que, na condição atual de ministro da Justiça, não consiga ou não queira ver o problema em sua real dimensão, para oferecer à sociedade brasileira, aos agentes do sistema penal e da segurança pública uma proposta com verdadeiro impacto na realidade do sistema, produzindo, ainda que contra o senso-comum, efeitos concretos de reversão das mortes e da violência. Simples, aí sim, é navegar a favor do senso comum. Se aprovado, o pacote vai gerar expansão dos números prisionais e, ao mesmo tempo, explodir as penitenciárias, onde já não há vagas suficientes, abarrotadas que estão com os presos do tráfico e do roubo. Não é responsável, para dizer o mínimo, que um ministro da Justiça proponha medidas de enfrentamento da violência e da criminalidade sem pensar nas consequências humanas, sociais, administrativas ou na sobrecarga financeira para o sistema. Nenhum planejamento, meta nenhuma, nada de reforma administrativa, ausente qualquer medida preventiva.
A única meta confessada, o “endurecimento penal”, está programada para se realizar pela antecipação do momento da prisão, por meio do que o projeto assume como sendo “execução antecipada” de condenação em segunda instância e nas condenações do tribunal do júri, mas também pela via do retardamento do alcance da liberdade – criação de obstáculos à progressão no regime de execução da pena. Aqui, num embate direto e explícito com a autoridade do STF, os maiores problemas têm a ver com a inconstitucionalidade das previsões, algumas delas em choque frontal com precedentes do Supremo. Mais rigor penal ainda se obtém com a redução do acesso à justiça pela via recursal, menos prescrição e, enfim, na ampliação legal dos limites no uso da violência, seja pelo particular, seja pelos agentes estatais. Este último caso diz respeito às propostas de redução e de isenção de pena nas hipóteses de abuso no exercício de direito, de reação desproporcional em face de perigo atual, de excesso no cumprimento do dever legal e na atuação em legítima defesa, quando a ação do sujeito (“agente”, na terminologia do direito penal) decorrer de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. A proposta do ministro traz uma previsão especial no caso do “agente policial ou de segurança pública”. Este estaria protegido pelo manto da legítima defesa por “prevenir” injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem ou “prevenir agressão ou risco de agressão a vítima refém durante a prática de crimes”. Aqui são muitas as considerações de natureza técnico-jurídica a serem feitas, mas algumas observações iniciais são necessárias. A discussão sobre o medo ou o susto (surpresa?) capazes de gerar intensa perturbação que afete “o agir como pessoa deliberativa”, na expressão do professor Juarez Tavares (“Fundamentos de Teoria do Delito”. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018), ou seja, que comprometam seriamente a capacidade de ação e resposta da pessoa, estaria mais bem situada em outro setor de análise penal que não o da existência de permissivo legal da conduta ou causa de exclusão de sua ilicitude. Esse exame deve ser – e já é – realizado no âmbito da chamada culpabilidade, mas a elucidação do tema exigiria uma resposta mais extensa do que comporta este artigo, além de uma boa tradução em linguagem mais aberta e comunicativa. O que o ex-juiz Moro não pode invocar é o desconhecimento desse “detalhe”. Enfim, é bem mais “simples” tratar do assunto na lei penal como causa de exclusão da ilicitude. Grave é fazer o contrabando da “violenta emoção” para o âmbito das causas de exclusão do crime. O Código Penal é expresso ao dispor que a “emoção e a paixão não excluem a imputabilidade penal” e que a “violenta emoção” pode, no máximo, reduzir a pena, mas nunca apagar o crime. Se aprovado, o contrabando vai abrir as portas para velhos fantasmas da impunidade que há muito já haviam sido varridos do ordenamento. É só imaginar situações que vão de brigas de trânsito ou de torcedores de futebol, passando pela violência doméstica e o feminicídio, até chegar aos conflitos do campo, da terra, nas ocupações de imóveis urbanos ou rurais. Ainda mais agora, quando a posse de armas de fogo é facilitada em nome desse sujeito abstrato construído na base do preconceito de classe pela execrável definição do “cidadão de bem” – que pode ser qualquer macho branco e proprietário de coisas e de pessoas, como esposas ou namoradas.
A respeito da proposta de reconhecimento de legítima defesa ao agente policial ou de segurança pública que previne agressão injusta e iminente ou risco de agressão a vítima refém há, igualmente, uma extensa análise a ser feita. Não é possível deixar passar em branco, entretanto, a impropriedade de se admitir, como defesa legítima, a prevenção de uma agressão ainda inexistente (defesa preventiva?). Se há agressão iminente não seria o caso de se falar em prevenção, mas em reação. Nessa condição, não há como avaliar o atributo da antijuridicidade do ato inexistente – a não ser que a injustiça de uma agressão ainda inexistente seja fruto de apreciação inteiramente subjetiva, o que contraria o próprio conceito – objetivo – de ilicitude ou antijuridicidade. Por outro lado, se a agressão injusta é iminente, ou seja, se está prestes a se materializar, a previsão legal em vigor já dá conta da situação, assim como já dá conta da hipótese do risco (iminência) de agressão a vítima refém, dispensando totalmente a bizarra “inovação”. Prevenção de agressão implica solucionar o intrincado problema de reação agressiva contra uma agressão inexistente. Aqui, se a hipótese é de agressão suposta, e desde que observadas outras circunstâncias previstas em lei, a questão convoca o tratamento do erro em direito penal, para falar de forma menos rebuscada. Finalmente, a expectativa da lei penal é que o policial em situação de legítima defesa atue sempre de forma ainda mais responsável e cuidadosa do que o particular, quando menos, porque a ele compete o dever de zelar pela incolumidade das pessoas e reduzir, ao máximo, a violência em relação ao próprio agressor. Mas não é esse o padrão de conduta da polícia mais letal do mundo – que também é a policia que mais morre nos tiroteios. A trágica realidade da atuação policial no Brasil demonstra que as propostas de Sérgio Moro estão na direção errada, na contramão do que seria esperado para enfrentar o problema das mortes de policiais e de civis envolvidos ou não diretamente no conflito. De acordo com o Atlas da Violência de 2017, em apenas em três semanas, nos cinco primeiros meses daquele ano, foram mortas no Brasil “mais pessoas do que o total de mortos em todos os ataques terroristas no mundo”. Na conclusão dos pesquisadores, o dado está a indicar um “padrão institucional” e não apenas “desvios de conduta” policial. Em 10 anos (2005-2015), mais de 318 mil jovens de 15 a 29 anos foram assassinados no Brasil. Mais de 92% desses homicídios atingem jovens do sexo masculino e a cada 100 pessoas mortas, 71 são negras. Uma pessoa negra no Brasil tem 23,5% a mais de chance de se tornar vítima de homicídio. Em 2015, em todo o País, ao menos 358 mortes registradas foram de policiais militares e civis. E tudo isso, vale lembrar, sem o auxílio providencial do mecanismo anticrime de Sérgio Moro, na conformidade do desejo do chefe do executivo, com a simpatia da bancada da bala e com o patrocínio dos donos do business das armas.
Uma das frases mais repercutidas do ministro nesses últimos dias – “nós fazemos a lei buscando efeitos práticos, não para agradar, necessariamente, professores de processo, de direito penal” – é para a arena política, para insuflar e “agradar”, agora sim, a torcida punitivista. Essa torcida é formada pelo público que identifica “professores de processo e direito penal” como defensores de direitos humanos, isto é, “defensores de bandido”, no glossário bolsonarista. A fala grosseira é própria de quem despreza o debate e desqualifica opositores e críticos do seu pensamento. Coisa de autoridade que não admite contestação, postura antipolítica e antidemocrática. Afinal, de onde viria a análise qualificada da proposta senão exatamente dos professores, especialistas e pesquisadores? Impossível evitar a discussão em torno do pacote anticrime. E não são poucas ou irrelevantes as questões que suscita. A crítica, certamente, não virá da bancada da bala, mas os efeitos negativos da aprovação de uma proposta como essa serão suportados por todos. Ou melhor, considerando a tradicional distribuição desigual da pena criminal, a seletividade do sistema e a fulanização da corrupção, está claro, desde logo, que os efeitos serão suportados por uns muito mais do que por outros. Fica a conclusão de que o pacote saiu da cabeça de uma equipe que não dialoga com organizações civis e nem com especialistas da área, uma equipe encerrada em sua bolha de conhecimentos bacharelescos e sem nenhuma sensibilidade social.