sábado, 27 de novembro de 2010

Direito ao dissenso.



Beatriz Vargas Ramos

“Segundo a investigadora Vera Malaguti, o inimigo público número um está sendo esculpido tendo por modelo o rapaz bisneto de escravos, que vive nas favelas, não sabe ler, adora música funk, consome drogas ou vive delas, é arrogante e agressivo, e não mostra o menor sinal de resignação” (Eduardo Galeano, De pernas para o ar: a escola do mundo ao avesso).


Desde domingo passado, quando surgem os primeiros incêndios de veículos nas ruas do Rio de Janeiro e a imprensa dá início à cobertura dos fatos, uma voz vem repercutindo e crescendo acima do burburinho e do bombardeio – o outro bombardeio, o das imagens, estáticas ou dinâmicas, que vem de todas as direções. Parece existir uma esperança no ar, algo semelhante àquele sentimento que paira em final de copa do mundo, de que, desta vez, sim, a vitória está garantida!
Diz-se que a vitória em questão é a da guerra contra o crime, em especial, o tráfico de drogas, o mais hediondo de todos, encarnado pelo inimigo público nº 1, aquele que convoca todos os ódios, medos e paixões.
Percebe-se em transmissões de rádio e TV uma entonação diferente na voz, um olhar diferente, outra respiração, uma adrenalina, certa dose de euforia, embora contida, na pronúncia de trechos inteiros de um discurso carregado de armamento mortal contra o traficante das drogas ilícitas, uma verdadeira descarga de metralhadora como esta: “Acuados centenas de criminosos, operação prossegue, 450 homens do BOPE e das polícias Militar e Civil do Rio, com apoio inédito de veículos blindados da Marinha, provocou a fuga de centena de criminosos da Vila Cruzeiro”... Tudo parece indicar um final feliz, vence o mocinho e o bandido é eliminado.
Surge no horizonte um outro Cabral que refunda (palavra que voltou à moda moda recentemente) um marco histórico e promete, a partir do Rio, (re)descobrir um novo Brasil em meio aos escombros da batalha contra o crime. Esse Cabral é jovem, cheio de testosterona, como todos os corpos machos envolvidos, heróis ou bandidos desta guerra. Chama a bandidagem para a briga, diz que não vai recuar, não tem medo de terrorista. A ênfase que a imprensa tem dado a esse Cabral não é a de líder de um governo estadual com “estretágias bastante distintas do padrão vigente”, como Cláudio Beato escreveu hoje na Folha de S.Paulo (26/11/2010, A-3).
Estão dizendo na TV que os brasileiros querem blindados e tanques de guerra para defender a “sociedade dos ataques dos criminosos”. E esses brasileiros existem e para nos provar sua existência são levados para a tela da TV. Formam, certamente, a tal maioria numérica (grupo que, sozinho, está em quantidade superior à metade do grupo inteiro) necessária para emplacar um plebiscito pela pena de morte, por exemplo. Despontaram na telinha pessoas que estão acreditando nisso, precisam acreditar, que as Forças Armadas vencerão a guerra contra o tráfico. Houve um cidadão que chegou a manifestar expressamente sua crença de que “no fim, o bem vencerá o mal”. O que estão pedindo os moradores das próprias áreas ocupadas pelas tropas e blindados? Exatamente isso, tropas e blindados! Nunca a voz da favela ecoou tão diretamente ou repercutiu de forma tão imediata junto ao Poder Público. Vocês querem o BOPE? Vocês querem o exército e a marinha? Pois tomem BOPE, tomem exército, tomem marinha! Não é a segurança um direito do cidadão? Na linguagem mercadológica: satisfação total do cliente! As mortes de crianças, idosos, jovens, homens e mulheres não diretamente envolvidos são efeitos colaterais do combate necessário.
Ora, mas essa é a fala dos que querem fazer da segurança pública a máquina para matança de brasileiros pobres, traficantes ou não traficantes, bandidos ou mocinhos! Esse discurso pode se voltar facilmente contra UPP’s, contra polícia cidadã, pode minar condições para construção de qualquer coisa distinta do BOPE e reverter as possibilidades de tratamento da questão da violência na linha dos direitos humanos.
Hoje eu ouvi no rádio um comentarista dizendo que Forças Armadas são treinadas para matar o inimigo e, portanto, “se todos querem as Forças Armadas nesse conflito, que depois não venham chorar os cadáveres espalhados”.
Sinto-me mal, dói a cabeça, o estômago arde, fico indignada... Discuto sozinha na sala, em frente à TV... O Merval Pereira também entende de segurança pública! Estamos salvos... E eu que nem sabia dessa... Já cheguei a pensar que ele era o dublê de voz do Alf, o ETeimoso , mas – quem diria! – não sabia de sua expertise em estratégias contra o crime. Acaba de sugerir o corte de todo e qualquer tipo de comunicação, com o mundo externo, dos líderes do tráfico que sairam de Catanduvas para Porto Velho.
E se a queima de automóveis não for por causa das UPPs? E se as milícias tiverem uma função mais importante nesse cenário?
Entretanto, não é implausível que traficantes dos morros do Rio reajam desta forma se estiverem diante da dificuldade de sobrevivência dos pontos de comercialização da cocaína ou, pior, na iminência de perder o controle sobre a venda da droga proibida.
(Aos traficantes “incluídos”, aptos ao exercício do consumo graças ao negócio lucrativo da cocaína, não interessa a descriminalização, porque outra é a lógica do mercado lícito, onde reassumirão o status de simples excluídos da ordem legal – dominada que é pela elite financeira, pelos ricos que podem consumir qualquer droga ilícita ou comercializá-la impunemente).
Como será que reagiriam, por exemplo, os empresários do fumo e do álcool se, por qualquer razão, absurda razão, fossem ameaçados de perder seu business? A diferença entre ambos, além, é claro, do selo de licitude/ilicitude do produto comercializado, é que o primeiro negócio gera muito mais dinheiro e movimenta uma outra indústria da morte, a das armas e munições.
Algum dia talvez se possa desmanchar esse falso consenso de que o proibicionismo penal, com a produção de cadáveres, culpados ou inocentes, vai derrotar o tráfico e deixar o Rio de Janeiro – e o resto do mundo – livre da droga. Hoje já se percebe alguma tolerância em relação à maconha, fala-se em consumo recreativo de maconha na Califónia, a maconha é cultivada na Califórnia. Está deixando de ser negócio de índio e está virando negócio de branco. Não demora a sair a legalização...
Essa guerra não é nossa. Não é carioca, não é brasileira e nem sulamericana. Que me desculpem certas personagens da nova esquerda punitiva, limpinha, engomadinha e que não fala palavrão, é injustificável o investimento de tantos recursos a serviço na eliminação física dos pobres. Massacre não significa mais segurança pública, é apenas o serviço do business dos equipamentos e tecnologias de segurança produzidos pelos países ricos. Essa guerra não existe para acabar com a droga. Jamais terá fim essa guerra infinita. Somente pausas, tréguas, intervalos. É para ser consumida no formato novela, seriado. Trata-se da guerra pela guerra, um outro bom negócio que não pode acabar, neverending war...
Produto altamente rentável no mercado, a guerra também é sensacional. Ela consome armamento e tecnologia e vende cinema, novela, jornal, cultura para a massa. Imagens reais e fictícias. A guerra vende sensação. No fim, a guerra é do mesmo partido que a droga, o partido da sensação, ela promete o mesmo que a droga.
Ainda pior que o consenso da lógica beligerante no terreno das drogas é a impossibilidade do dissenso – arrogante, violenta e antidemocrática. Por que não discutir princípio de segurança pública, ao invés de alimentar o espetáculo produtor de ethos heróicos e guerreiros, papéis historicamente destinados aos eternos derrotados, de ambos os lados, dessa estúpida guerra, os jovens pobres que vêm do mesmo lugar, uns para serem policiais e outros para serem bandidos? Não, isso não é um set de filmagem, isso é real.
É real o fogo marginal que se espalha pelo asfalto fazendo vítimas de verdade. Não é faz-de-conta o fogo oficial que sobe o morro para deixar mais corpos no chão. Ao final, a luz não vai se acender, não haverá cortinas a se fecharem sobre uma grande tela escura por onde desfilarão os créditos da obra. Não, não haverá um fundo musical, enquanto nós, passivos espectadores, mudamos de canal, do jornal nacional para a novela das oito, com a agradável sensação de que é o mundo que está mudando para melhor (ou para pior, quem sabe?). O depois será o saldo da violência, a morte, a dor, a intensificação do ódio, na sequência, o esquecimento e, com ele, outros jovens, pobres e negros, retomarão os postos dos bandidos mortos. A guerra continua, já pode recomeçar.
Essa queima de carros e ônibus praticada no palco social visível da classe média pede uma resposta imediata, é verdade, uma reação pronta, de força e manutenção da ordem. Mas é pontual, uma reação momentânea, porque não dá para transformar as forças armadas na força de segurança das cidades brasileiras, seja o Rio ou qualquer outra. Irmão invisível, grande irmão que nos vê a todos, anjo do bem que abre para nós suas janelas de ver o mundo, deixe-nos em paz com nosso sofrimento. Não nos queira convencer que essa guerra é boa, que é a única saída possível e vai nos livrar de todo mal da droga para sempre, amém.
A discussão pública corre o risco de seguir, mesmo depois do fim das recentes eleições, a mesma linha estúpida, simplificadora e maniqueísta entre o bem e o mal, no caso, a guerra ou a droga. Por favor, que se respeite ao menos o direito que as minorias (grupo que, sozinho, é menor que a metade do grupo inteiro) têm ao dissenso! 

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Gerúndio, sim! Por que não?!

Beatriz Vargas Ramos

Assumo, sou fã do gerúndio! Sempre fui e sigo sendo! Fico pensando sobre o que seria de nossa comunicação sem a boa e velha forma verbal que eu aprendi a amar antes mesmo de aprender a ler...

Meu filho mais velho, Zé Roberto, tinha lá seus 4 anos de idade, quando me forneceu a prova definitiva e vibrante da expressividade do gerúndio, a própria razão de ser dessa maravilhosa e imprescindível forma nominal do verbo. O Beto comia, com garfo, colher e mãos, um talharim à bolonhesa que eu havia feito especialmente para ele, com todo esmero. Eu, com aquela satisfação que toda mãe tem de alimentar o filho, não resisti e o provoquei a manifestar sua opinião sobre a comida:

Gostou do macarrão, filhote?

Ele olhou pra mim com o rosto sujo de molho, mas nem por isso menos sério, e falou com um certo ar professoral:

Não gostei, mãe... ainda tô gostando!

(Ele acentuou aquele “ainda”, esticou a pronúncia do “i” – “aiiiiiiiinda” – para facilitar o entendimento da frase).

Claro que faz sentido! É como se ele dissesse: “não é possível que você não vê o que está acontecendo, eu estou em pleno ato de comer”!

Ele não queria deixar dúvida de que não havia terminado de comer, que precisava de mais compreensão da minha parte, mais paciência, mais tempo para que pudesse, somente ao final, pronunciar seu veredicto. Ele ainda estava saboreando, comendo, gostando... A ação estava em andamento.

Com o inigualável auxílio do gerúndio, qualquer um pode ficar entregue ao ato de saborear macarrão, ficar fazendo isso de que está gostando, porque uma hora acaba... aí, sim, pode dizer se gostou... mas, por enquanto, que lhe seja permitido ainda estar gostando... Só o gerúndio pode fazer isso, representar assim o presente que se quer eternizar.

Imagine a angústia de alguém para exprimir essa exata ideia em palavra se não houvesse o gerúndio... é ele quem transporta esse sentimento que quer acontecer como verbo. Aí está uma ideia de ação em desenvolvimento, nem passado nem futuro, que somente é possível com o gerúndio.

Não! Por favor, que ninguém me venha dizer que nós, brasileiros, ainda continuaríamos (sendo) brasileiros se, ao invés de dizer estou gostando, disséssemos – ou, pior, fôssemos obrigados a dizer – estou a gostar.

Ah, não! Tem dó... Estou a gostar, estou a comer, estou a soltar pipa, estou a dançar o vira, estou a cozinhar o bacalhau, estou a ficar brava comigo mesma, enfim, todos os estou a isso ou àquilo... é lusitano demais! Não sei dançar o vira, embora nada tenha contra ele, aprecio o bom bacalhau e meu avô era português, mas, por favor, não sinto a alma apaziguada ao dizer estou a gostar, quando minha vontade é declarar que estou gostando. Meu jeito de gostar requer o gerúndio para exprimir esse gostar em pleno desenvolvimento, esse gostar na sua continuidade, na sua duração, o gostar ainda não interrompido, pleno, não finalizado.

Que seja infinito enquanto dure”, diria Vinícius... O gerúndio é isso, essa duração, é mais que isso, é a eternização do presente, o infinito.

Acho que se eu dissesse ao namorado estou a gostar de ti ele não acreditaria. Se ele me dissesse o mesmo eu não poderia conter o riso. (Impossível não lembrar das frases trocadas pelos amantes portugueses em A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro).

É exatamente por amar o gerúndio que tanto me dói o uso, caracterizadamente urbano e mercadológico, que se difundiu por ação dos operadores de central de chamadas empresariais e/ou comerciários em geral. Quem nunca foi açoitado pela frase “o(a) senhor(a) vai estar tendo a oportunidade de escolher qual a melhor forma de pagamento”? Bem, é verdade que o estar tendo é muito radical, mas o “estarei transferindo sua ligação”, ou o “vou estar conferindo seu cadastro”, “vamos estar enviando”, “vamos estar resolvendo” são comuníssimos. E o “não vai estar dando para estar fazendo”? É a overdose, socorro, é letal!

Muito já se disse sobre esse gerundismo, inclusive que ele é álibi para o não compromisso, um substituto para o tradicional “um minuto, por favor” ou “espere só mais um segundinho” que, como se sabe, têm o mesmo significado de “desista” ou “é melhor esperar sentado ou voltar no mês que vem”. É, numa expressão já bem incorporada à linguagem de todo dia, o (também gerúndio) “vá esperando”!...

Esse mau uso – e abuso – tem tudo a ver com a adaptação que fazemos, em nome da imitação e do culto ao deus mercado, do idioma inglês e que chega no kit terceiro mundo exportado, sobretudo, pelos E.U.A. – aliás, desde os anos 40, com o Zé Carioca. A existência desse uso escorregadio do gerúndio é inegável, mas não é ele o vilão da história!

Por isso, quero, aqui, deixar claro meu repúdio a qualquer tentativa de condenação do gerúndio por causa de seu mau uso. Isso seria ainda mais abominável que o próprio gerundismo. Seria, como se diz de vez em quando, jogar fora a criança junto com a água do banho.

Ora, o gerúndio é muito mais do que bom, é vital. É como o ar. De tão necessário nem o notamos até nos depararmos com a violenta ameaça de sua privação. Aí é o pânico total, não dá para viver sem ele...

O que seria de todos os considerando do mundo? E dos falando nisso, falando sério, pensando bem, mudando de assunto? Como preparar o chá sem água fervendo? – embora digam que isso não é muito brasileiro, pelo menos em Minas Gerais sempre foi com água fervendo... E o que dizer dos inúmeros títulos das inúmeras teses das ciências sociais? (Brincadeirinha....)

O gerúndio está presente na boa literatura brasileira e não está ausente da poesia. Do primeiro caso, uma passagem bem típica da prosa de Guimarães Rosa, em A estória de Lélio e Lina:

Ô morena! – gritou o Mingôlo. – Morenando sempre mais?” – Ora veja! – ela respondeu de lá. – Cê quer brancura, ou quer fartura?...

Retirar esse gerúndio do texto é amputar o texto. Trata-se de verdadeiro gerúndio, ninguém pode negar.

Um exemplo do segundo caso, com Drumond, em Os últimos dias:

De ver passar este conto: o vento
Balançando a folha; a sombra
da árvore, parada um instante,
alongando-se com o sol, e desfazendo-se
numa sombra maior, de estrada sem trânsito.

O gerúndio é encontradiço nas letras de sambas brasileiros, como, por exemplo, o Eu bebo sim, de Luís Antônio, sambista carioca e autor do clássico Barracão: “Eu bebo sim, estou vivendo, tem gente que não bebe está morrendo” (que, na tradução lusitana, seria: “eu bebo sim, estou a viver, tem gente que não bebe está a morrer”... como se vê, não dá!)

Aliás, gerúndio é um nome prenhe de poesia, uma palavra lírica... Faça o teste, pronuncie com calma, sílaba por sílaba... não parece que algo está gerando e sendo gerado ao mesmo tempo?

Enfim, é preciso sair em defesa do direito de todos os brasileiros ao bom uso dessa forma verbal, defendendo o gerúndio, ou gerundiando para ser feliz!