sábado, 15 de janeiro de 2011

Ano novo ou tudo de novo?



 Beatriz Vargas Ramos


Não é porque é novo que tem de ser diferente do que já foi. Pode ser, não importa se bom ou ruim, simples repetição do passado. Pode ser o mesmo outra vez.
É bem verdade que todo gesto, todo ato ou movimento é único e singular, se introduzido o dado do tempo. O passado, tal como se deu, é irrepetível. Nesse sentido, tudo é criação ex novo, até mesmo aquilo que se repete. A repetição só é possível porque há um agora, um presente que sucede ao passado, e um futuro que só se realiza como presente e, desde logo, se converte em passado. Hábito é isso, reprodução, no presente, daquilo que já não é (mas que pode voltar a ser, pela repetição). Por isso é também constância e continuidade. É novo, como novo é todo ato a seu tempo, mas não encerra novidade. Não faz diferença com o que foi, não traz mudança, nada transforma, ao contrário, anseia a estabilidade. É permanência, costume. Interessante que hábito e costume também significam roupa, traje, vestimenta. Vertir-se, trajar-se também é, por sua vez, um hábito.
Antenor Nascentes (Dicionário Etimológico da Língua Brasileira, Rio de Janeiro, s/e, 1932, primeira e única edição, exemplar nº 838) informa que a palavra vem do latim hatibu, que significa “estado, modo de ser, postura, aspecto, trajo”. Aurélio Buarque de Holanda (Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999) também traz essas definições de hábito. Interessa-nos a primeira: “disposição duradoura adquirida pela repetição frequente de um ato, uso, costume”.
A sucessão temporal proporciona a experiência da repetição, até a mesmice, a invariabilidade, a inalterabilidade, a linearidade, ou, ao contrário, torna possível a introdução de algo novo, de rompimento com o passado, de fratura, de interrupção do hábito, de transformação – e, de novo, estabilização e, mais adiante, outra ruptura...
A experiência do tempo mostra que a permanência não existe, mas isso não nos impede de desejá-la ardentemente, a começar pela nossa própria existência. A instabilidade atormenta e a ela não nos acostumamos. O passar do tempo se converte em finitude e, com isso, impossibilidade de voltar a ser. O sentido trágico da condição humana é evidente: a ausência de futuro – e a impossibilidade de retorno ao passado, a irreversibilidade, de que nos fala Prigogine – é o fim de toda repetição. Inventamos formas de evasão do tempo, ritualizamos a criação, construímos a regra, buscamos regularidades no universo, seja por intermédio da ciência ou da magia. Janine Ribeiro já disse que a astrologia e a ciência têm a mesma pretensão de prever o futuro e controlar os fatos, antecipando o que está por vir, aniquilando a surpresa. O tempo é a mais dinâmica de todas as regularidades e a mais reveladora prova da finitude, da provisoriedade. É nele que desaparecemos. Somos provisórios. Contamos o tempo que nos foge a cada segundo, porque necessitamos da previsão, e nem por isso deixamos de querer eternizá-lo, aprisioná-lo. Repetir é um modo de parar o tempo. Por isso, “cumpre imaginar Sísifo feliz”, como diz Albert Camus, lembrado por Roberto Aguiar em seu texto genial, Os filhos da flecha do tempo.
A memória é uma estratégia de estabilização do fato e, com isso, uma forma de vencer o tempo. Trazer de volta o passado é, ao mesmo tempo, nosso triunfo e nosso fardo, porque nem tudo o que está no passado deve ser trazido de volta pela memória ou pela repetição. E, no entanto, talvez pelo hábito, pelo medo diante do novo, do imprevisível, ou pelo vício, pela incapacidade de governar nossas próprias reações, repetimos também aquilo que não queríamos repetir.
Lançados na experiência da vida, desperdiçamos as oportunidades de mudança, não enxergamos as condições que tornam possíveis novas ações e novos resultados. Execramos o erro, o risco e a dificuldade e inventamos mentiras que nos confortam e nos livram de avaliar nossos próprios atos – mas nem por isso somos menos rigorosos com os atos alheios. Amamos a segurança do caminho batido e temos dificuldade de imaginar nossa felicidade fora das certezas. Não fazemos perguntas se não sabemos, antes, as respostas. O que queremos, no fundo, é retornar à segurança do berço, à proteção do útero ou do ovo. Como disse Estanislao Zuleta, “Adão, e sobretudo Eva, têm o mérito original de nos ter livrado do paraíso, nosso pecado é que ansiamos regressar a ele”.
Somos cegos, de uma cegueira branca como a de que nos fala o Ensaio, de Saramago. Ora, mas se é o desafio que nos mantém vivos! A estabilidade é a morte, o fim de toda busca e de toda interrogação. É paralisia, é repouso. A vida está na possibilidade de mudança, na renovação das incertezas, na diversidade das soluções, na complexidade dos problemas, na abertura para horizontes distintos antes impensáveis, porque fechadas, pelo discurso das verdades universais, as vias das trocas de conhecimento. O malestar que nos provoca a ideia de crise é filho de nossa obsessão por segurança e da nossa afeição pelo dogma, que não pode ser superado, ainda segundo E. Zuleta, sem abrir imediatamente a “questão essencial da angústia”, a perda da identidade, a questão de se saber “quem sou eu agora que não penso mais assim?”
A crise, segundo Edgar Morin, “se manifesta não somente como fratura no interior de um continuum, perturbação de um sistema até então aparentemente estável, mas também como crescimento das eventualidades, isto é, das incertezas”. Mas o processo da crise não apenas desorganiza, também reorganiza – no sentido, talvez, uma nova estabilidade provisória e temporária.
Por que não podemos mudar? Como pretender alguma mudança no mundo que nos cerca se não somos capazes de mudar a nós mesmos? Por que não podemos ser uma metamorfose ambulante? O que precisamos conservar senão a vontade de crescer em equilíbrio com os demais viventes, permitir a vida e resistir ao vazio, recolocando sempre, em constante processo de tensão, a pergunta sobre como estarmos felizes sem ostentarmos tantos símbolos, tantos teres e haveres, sem precisarmos de um guia, sem precisarmos de vassalos, sem ter que nos subordinar a ninguém ou ser por alguém subordinados? Podemos tentar o equilíbrio entre ser águia e ser formiga ao mesmo tempo, como diz o Professor José Carlos Reis. Podemos tentar enxergar de outras janelas ou nos render ao mistério ou nos contentarmos com o conhecimento provisório e precário. O terror não está na mudança, está em nossa falta de coragem para assumir a necessidade da transformação. 
Por isso, bem vinda seja a crise! O futuro não está garantido, jamais estará, mas é preciso reverter alguns processos em curso e deflagrar outros, para que a humanidade tenha futuro. 
Karl Jaspers que, segundo Hannah Arendt, foi um homem que, “sem jamais fraquejar”, se opôs a Hitler desde o começo do regime nazista, dizia que “se o homem quer viver, deve mudar”.
Em nome da mudança, desejo a todos um ano crísico, como diz Edgard Morin. Um ano crísico em relação aos processos imbecilizadores da mídia de massas, para que nos seja possível enxergar o mundo fora dos marcos autoritários de um falso consenso; em relação aos processos avassaladores em favor da morte, às pretensões totalizadoras de ódio e de preconceito, envoltas no fundamentalismo religioso e no fanatismo; aos projetos de aniquilamento, de aprisionamento, de exclusão e de guerra; aos projetos de voracidade de lucro e de consumo desenfreado sem respeito à vida no planeta; de poder e de controle global que nos levarão ao desequilíbrio extremo e, certamente, ao desaparecimento.  
Essa é chamada de flor do papagaio, a Leda que mandou pra mim, é linda, de verdade. Beijo, Ledinha! 
Tem mais!

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011


A última flor da terra
(Para o Carlos)

Quem vive o amanhecer do teu dia claro,
Quando o sol reparte as folhas das castanheiras
E desce pela estrada no mar azul do horizonte,
Quem bebe do teu beijo sorrindo
Como bebe o vinho da romã vermelha
E abre os olhos em tuas mãos macias,
Quem anoitece ao teu lado e adormece e sonha
Na calmaria branca dos travesseiros,
Quem ouve teu choro dentro da noite escura
E conhece todos os teus medos,
Quem te escuta contar a lenda do besouro verde
Quando tua alma retorna à floresta espessa de onde vieste,
Quem está contigo enquanto o tempo da velhice chega
E a morte cega vagueia por entre as névoas cinzas do caminho etéreo.

A quem clareias no amanhecer do teu dia,
Quando o sol se deita sobre as castanheiras
E atravessa as águas de um longínquo mar vermelho,
Quem bebe do teu vinho abundante
Como bebe o beijo macio da romã branca
E abre as mãos ao teu olhar-sorriso,
Quem adormece a teu lado e anoitece calma
No sonho azul dos travesseiros.
Quem escuta teu medo dentro de teu choro
E conhece o breu das noites que atravessas,
Quem te ouve contar a lenda da floresta,
Quando se liberta o besouro verde de tua alma,
Quem está contigo enquanto a morte cinza chega
E o tempo da velhice espreita por entre as névoas da cegueira eterna.

Ouve, amor,
Ouve a música de tuas cordas roucas,
Vê, essa mulher sou eu,
Na primeira noite ela dança sob a luz da lua cheia,
Segue os tambores selvagens da tribo primitiva,
Desaparecida entre o cetim lilás que cobre tua memória,
Ela já foi bela,
Um dia foi atriz,
Hoje é tenaz e louca,
Na segunda noite ela canta e delira e queima os cabelos no fogo de uma febre alta.
O amanhã traz teu amor de volta...
...E não é pouco.
Cumpre aceitar e estar feliz de novo.
Ontem perdeu tuas sementes em solo estéril,
Mas ainda há tempo de salvar a última flor da terra...

(Beatriz, em 12 de janeiro de 2011)


quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Ainda temos cachaça

Onde estão nossos heróis, com seus helicópteros, aqueles mesmos que subiram o morro do Alemão, agora que os pobres do Rio de Janeiro morrem com a chuva? Não temos ação de salvamento. Nem perdemos tempo com isso. (É um absurdo pensar que poderíamos ter algum plano a ser executado! Ora, são as forças da natureza, simplesmente. Nos conformemos com a vontade de Deus!) Há câmeras e luz, mas nenhuma ação, só desespero. E espera. Nenhum herói aparece. Ninguém acode ao pedido de socorro, ninguém pinta a cara para a guerra, não há glória, não há glamour, não há nada. Tudo vira silêncio. Tudo vira discurso. Não temos armas contra o turbilhão. Podemos prevê-lo, podemos saber onde ele vai devastar, mas não temos dinheiro para prevenir a catástrofe – o dinheiro vai para a guerra. Podemos apenas consentir que a catastrófe continue fazendo suas vítimas longe dos shopping centers, longe das vitrines elegantes, longe da festa do consumo. Não há defesa civil, não há força de segurança nacional nessa hora.Tudo vira água. A água leva os desamparados e devolve seus cadáveres. O de sempre... pobre morrendo. O lucro vai para as funerárias e os coveiros não têm pá suficiente para cavar tanto. Ainda temos cachaça! O Estado intervem com abundância de recursos e tecnologia bélica para exterminar traficantes pobres, mas não existe Estado para salvar a pobreza da catástrofe das chuvas... crônica desde sempre anunciada, que poderia não existir, ao menos não nas circunstâncias e na proporção que se vê agora, ou que poderia não fazer tantas vítimas, se houvesse um mínimo de preocupação com as condições de habitação das pessoas e respeito ao meio ambiente. Temos dinheiro para matar, mas não temos dinheiro para a vida. Até quando vamos apostar na política pública da morte, na política da exclusão da vida? Esse é o nosso projeto de segurança pública? Ele serve ao morador do barraco? Segurança pública não tem nada a ver com qualidade de vida da população? Até quando vamos admitir a barbárie? Onde estão, agora, os nossos heróis? O carnaval está chegando. Temos olimpíadas e futebol e novela... Tiririca no Congresso, a mulher do Michel Temer desfilando em Brasília, os bancos continuam lucrando, novo Big Brother. Tudo não passa de mais um espetáculo. Ah! Como somos felizes! Brasileiros, bem vindos a 2011!