quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Tristeza (II)

Tristeza (II)
(Para Lélia Almeida, minha irmãzinha querida)
21/02/2012
Eu também, Cecília,
Não sou alegre nem sou triste...
Ah! Quem me dera ser poeta!
“Irmã dos loucos”, Maurício,
“Que fazem da lua toda sua fortuna,
Ainda que pareça tão pouco”...
Quero o abraço do vento,
Amar a experiência do tempo,
Quero atingir o abstrato.
Abaixo a ditadura da alegria permanente!
Quero viver minha tristeza,
Quero viver minha alegria,
Quero deixar fluir a emoção da vida
– Humana experiência sem paraíso –
E conhecer o que se move e se revolve em mim...
Viver a emoção da chegada,
Experimentar o sabor da espera,
Sentir o gosto da partida.
Também não creio, Lélia querida,
Na obrigação de ser feliz.
Happy Joe é um babaca
E a Disneylândia é um tédio...
Não quero consumo e nem quero remédio,
Posso ser triste e alegre.
Oh, civilização do riso,
Triste civilização da alegria,
Me deixe em paz com a minha dor...


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Papo de advogado nº 1


O garoto que fumava maconha

 

Beatriz Vargas Ramos, 21/02/2012

 

“Ele grita toquem mais doce a morte a morte 

é uma mestra da Alemanha”

Paul Celan

 

Jovem, cheio de planos e pleno de certezas nos seus 20 anos de idade – nada demais, as certezas são possíveis aos 20 anos de idade. Alternativo, veganista, pianista, não usava roupas de grife e nem namorava patricinhas. Empregos esporádicos, ajuda financeira da família, mesada do pai. Morava sozinho e, de vez em quando, hospedava algum amigo, ou amiga, por tempo indeterminado, que o ajudava a dividir as despesas do aluguel da pequena casa de bairro. Primeiro semestre do curso de artes cênicas, leitor de Nietzche e Maffesoli, adorava a poesia de Paul Celan. Também escrevia seus poemas, suas músicas. Outsider, usava maconha. Um dia foi preso e acusado de traficar a droga. Tinha ido comprar. Trazia consigo três cigarros, mas a polícia, antenada, suspeitou que podia ter mais – cabelão, tatuagens, brinco na orelha, jeito descuidado de se vestir. Foi levado até sua casa, onde a polícia entrou sem ser convidada e encontrou mais quantidade da mesma droga – que foi considerada superior ao “indicado” para o consumo pessoal. Tentou argumentar, negou que vendia maconha. Não resistiu às algemas, mas assim mesmo tomou um soco no maxilar, “para não bancar o esperto”. Foi conduzido à delegacia, autuado em flagrante. Os testemunhos dos dois policiais, a quantidade de maconha apreendida e o local da prisão, “conhecido como boca-de-fumo” – diria o delegado e repetiria o juiz – foram decisivos para a classificação como tráfico. Da delegacia, foi parar em um estabelecimento para presos provisórios. Ali passou seu aniversário, numa cela com mais dezoito jovens “traficantes” e um, não tão jovem, ladrão de automóvel. Os companheiros de cela, menos alternativos, mais sofridos, mais pobres, menos educados, estranharam a presença de um universitário. “Filhinho de papai”, com certeza. Ali todo mundo sentia falta de tudo. Cigarro valia ouro e silêncio podia ser interpretado como hostilidade ou sinal de superioridade em relação aos demais. Abrir a boca também era difícil. Ninguém se entendia direito e ele não conhecia a gíria dos veteranos. Era melhor não deixar escapar tudo o que vinha à cabeça – incrível o fato de nunca haver se dado conta do que é ser livre. Pressão de todo lado. Muitas vozes o tempo todo. Vozerio ininterrupto, ensurdecedor. Falas sem pausa, sem paz, sem trégua, encontros e desencontros verbais, ansiedade, risadas nervosas. A sensação era de que algo estava, sempre, prestes a explodir. “Preso é muito difícil, nunca está satisfeito. Com a família do preso a gente dá conta de lidar, mas com o preso é difícil” – diria uma agente penitenciária que trabalhava na portaria do estabelecimento. Jovem também. Ali todos eram jovens. Jovem vigiando jovem. O espaço era pouco e tinham que fazer rodízio para deitar nos colchões que não eram suficientes para todos. Cheiro de suor e de merda misturado a creolina. Um banho de sol por dia, quatro refeições. Resistiu razoavelmente aos 2 meses e 11 dias entre a prisão e o julgamento do primeiro habeas corpus que o advogado, contrato pelo pai, impetrou contra a decisão do juiz que converteu o flagrante em preventiva. Parou de fumar, mas perdeu peso. “Gostou do Spa, mauricinho?”, zombavam os colegas de cela. “Perigoso à ordem pública”, disse o juiz. Estranha sensação essa de se ver definido como alguém “perigoso à ordem pública”, por alguém que nem sequer o conhecia, nunca o havia visto e nem sequer estava interessado em perder muito tempo examinando as circunstâncias concretas do seu caso. Inútil contestar. Rotulado. Perigoso à ordem pública, de um lado; mauricinho, do outro. “Eu não havia me visto como mauricinho antes...”, pensava. Veio a notícia de uma visita do advogado. O habeas corpus tinha sido indeferido. A prisão era necessária para garantir a ordem pública, porque, solto, poderia “voltar à traficância” e, além disso, era “conveniente para a instrução do processo”. Nesse dia foi orar com os evangélicos que se reuniam no banho de sol. Engoliu choro. De volta à cela lhe perguntaram se ainda ia ficar mais tempo no hotel cinco estrelas. Risadas. “O mauricinho tá tristinho, tá?”. Era ele quem recebia mais visitas, mais cartas e tinha advogado particular. Todo mundo sabia. Só podia ser advogado particular. Dividia com um colega mais novo as coisas que a família lhe trazia nos dias de visita. O rapaz não tinha visitas, não tinha cartas, não tinha nada. Conversavam sobre tudo. Ele tinha pena do menino. Dezoito anos, como seu irmão mais novo. Pediu ao seu advogado que fizesse algo pelo rapaz. O advogado não quis prometer nada, mas disse que “ia ver o que dava para ser feito”. A Justiça ia entrar em recesso de Natal e de fim de ano e o advogado resolveu esperar que acabasse o período, para impetrar o novo habeas corpus, porque o juiz de plantão era conhecido como alguém que se gabava de nunca haver deferido uma única liminar. Era o caso de esperar mais um pouco, porque havia chances de reverter a situação e valia a pena aguardar para a distribuição normal do pedido. Mas, não se sabe como, “vazou” para o pessoal da cela a notícia de que ele estava “prestes a ser libertado”. E o mataram dentro da cela. Foi asfixiado. O menino de dezoito anos foi levado para uma cela “individual” – leia-se, cela com mais duas ou três pessoas.

O nome dele eu não sei. Não tem nome, é só mais um garoto. Sei que foi morto na manhã do mesmo dia em que o advogado iria distribuir o novo pedido. Ninguém pode saber no que ia dar, mas havia chances. Réu primário, bons antecedentes, não integrava organização criminosa, essas coisas... O advogado levou a culpa. O mesmo juiz que se gabava de nunca haver concedido uma única liminar em habeas corpus, teria dito - segundo o que alguém ficou sabendo - que, naquele caso, “poderia ter quebrado a tradição de não conceder alvará de soltura em caráter liminar”. Também não faltou quem opinasse que, enfim, a despeito da tragédia, a ordem pública saiu ganhando...

Naquela mesma tarde, chegaram ao estabelecimento 170 presos por tráfico.