Albertina e Valentina
Beatriz
Vargas
Oficina da Escrita – 18/06/2019
As tias Albertina e
Valentina são fantasmas amigos de minha infância. Posso vê-las deslizar pelos
corredores do casarão de Itabira e ainda ouço o ranger de seus passos no
assoalho de madeira. O casarão, hoje decaído, foi comprado pelo pai de meu
bisavô Eduardo, no início do século XIX, com o dinheiro da venda de parte de sua
herança ao Barão de Catas Altas. Nessa época, meu bisavô se mudou com a família
para o povoado de Sant’Ana, depois Itabira de Mato Dentro. Foi no casarão que
Eduardo nasceu. Ele era o pai das gêmeas Albertina e Valentina, e também de Elvira,
Eleonora e de minha avó, Jacintha, única filha de seu segundo casamento, aos
setenta anos de idade. Elvira e Eleonora faleceram muito jovens. Primeiro,
Elvira, de meningite; depois Eleonora, de pneumonia “galopante”, como falavam os
antigos. As cinco irmãs nasceram no casarão, onde Albertina e Valentina, no
mesmo dia, também morreram. As duas ocupavam um quarto com três enormes janelas
que se abriam para o nascente, sobre canteiros de zínias e palmas-de-Santa-Rita.
Menina, eu as espiava pelas frestas da porta, dedicadas a um ritual noturno e interminável.
Sob a luz amarelada de um pequeno abajur art
nouveau, escovavam, uma à outra, os longos cabelos brancos, revezando-se no
banco em frente ao espelho oval da penteadeira. Em público, porém, traziam os
cabelos presos na forma de um coque baixo, próximo à nuca, que, obediente, jamais
se desprendia. A visão clandestina de seus cabelos soltos, como um véu de seda
ondulada a lhes cobrir as costas até a altura dos quadris, tinha, para mim, o
sabor de uma aventura quase pecaminosa.
O quarto de Albertina e
Valentina era o único lugar da casa onde não se viam imagens de santos – e a
casa inteira foi despida dessas imagens depois da morte do meu bisavô. Não
frequentavam missa e à igreja não iam nem para os funerais, nem para os
casamentos, nem para os batizados. Mudavam de calçada toda vez que avistavam o
Padre Brás, para evitar suas lamúrias e seu mau humor. Caminhavam sempre de
mãos dadas. Dois anjos de doçura uma com a outra e ambas com toda gente.
Durante a vida, ninguém as ouviu gritar ou pronunciar um único palavrão que
fosse. Não falavam da vida alheia, não saíam depois das seis da tarde, não iam
a salões de beleza e mantinham bem fechadas as janelas da frente do casarão. Para
elas, a coisa mais “sem graça” do mundo eram as flores de plástico. Cultivavam o
jardim mais bonito de toda a cidade, com ajuda de Teodoro, o velho jardineiro
da prefeitura, e de Eulália, a empregada da família, outra solteirona habitante
do casarão, dez anos mais nova que as duas irmãs. Muita gente vinha ver ou
fotografar o jardim das minhas tias. Elas recebiam sorridentes os visitantes,
com bandejas de café e licor de jabuticaba. Foram elas que me ensinaram todos
os nomes de flores que eu sei. Divertiam-se comigo, ainda bem pequena, por
tropeçar nos canteiros e nas sílabas de astromélia marsala, dendrobium e phalaenopsis.
As tias eram altas e
delgadas, de formas corporais pouco acentuadas, exceto pelos grandes seios,
sustentados por sutiãs de aro e espuma, que se viam ainda mais volumosos por
conta dos panos fartos. Não se permitiam nem o mais comportado dos decotes. Tinham
feições delicadas, nem feias e nem bonitas. Gestos suaves e contidos. Pele
clara marcada por manchas senis nas mãos, nos antebraços e no rosto. Falavam sempre
tão baixinho que tudo parecia segredo. Era impossível ouvi-las numa sala
repleta de gente ou à mesa das refeições em família. Albertina tinha um olho
castanho e outro azul. Valentina tinha os dois olhos azuis com manchas
castanhas, como – diziam – os de meu bisavô Eduardo, seu pai. Usavam vestidos
discretos de saias longas, mas também calças compridas, como só os homens de
seu tempo. Roupas de cores diferentes para cada dia da semana. Estavam sempre
juntas, nunca se separavam. “Por isso é
que não se casaram...” – concluía, compadecida, minha avozinha, que não
podia imaginar a vida sem meu avô João Cândido.
Albertina e Valentina
mantinham o orfanato da cidade. Por muito tempo, também foram as principais
doadoras da Sociedade Médica de Profilaxia
da Lepra. O único período em que moraram fora de Itabira foi para estudar
no Conservatório de Música em Belo Horizonte, mas não chegaram a se formar. Lá frequentaram
rodas de jovens e intelectuais anarquistas. Meu bisavô as trouxe de volta a
Itabira, antes que estourasse a Revolução de 1930. Pouco tempo depois, engajaram-se
na campanha nacional pelo voto feminino. Em São Paulo, conheceram Bertha Lutz
e, graças à influência da nova amiga, publicaram artigos sufragistas em um
grande jornal da época. Chegaram a integrar a Liga das Mulheres Eleitoras. Concluíram sua formação musical na
Europa, para onde, anos seguidos, iam a estudo ou a passeio. De lá regressavam
com malas cheias de presentes para as crianças da família e do orfanato. Tinham
fortuna suficiente para viver sem trabalhar, mas davam aulas de canto e piano
para meninas e moças. “Invertidas!” –
bradavam as beatas indignadas. “Não se uniram
a ninguém para não ter que dividir seu patrimônio!” – sentenciavam as
bem-casadas. Minhas tias não demonstravam qualquer indício de irritação com esses
comentários. Àqueles que os reportavam, faziam apenas o gesto do indicador sobre
os lábios cerrados, para depois sorrirem, complacentes.
Albertina e Valentina,
já idosas, como sempre as conheci, organizavam piqueniques para as crianças do
orfanato e, quando possível, eu ia junto com elas nessas excursões. Passava
minhas férias em Itabira, onde as tias me ensinaram a andar de bicicleta, a
cantar o hino da internacional anarquista em francês e a odiar a Companhia Vale
do Rio Doce.
No primeiro domingo de
cada mês, no começo da noite, meus avós as visitavam no casarão. Tomavam vinhos
e licores, comiam delícias preparadas por Eulália e dançavam ao som de peças
populares executadas ao piano pelas “Tinas”, como as chamavam em tom carinhoso,
de brincadeira. Às vezes jogavam cartas, às vezes apenas conversavam. Os quatro
se davam muito bem. Meu avô João Cândido e as “Tinas” eram amigos desde a
infância e minha avó a irmãzinha órfã de mãe que as duas ajudaram a criar. Os
encontros não terminavam cedo. Bem depois da meia noite, acompanhados por
Eulália, seguiam juntos até o portão, onde se despediam. E eram muitos os
abraços e tantos os agradecimentos que fica difícil entender como lhes foi
abater a tragédia justo nessa hora. Era verão, mas uma brisa fresca soprava rio
acima, espalhando o aroma das damas da noite que ladeavam a entrada do casarão.
Quando o portão se fechou, um enorme cachorro branco atacou minha avó,
rasgando-lhe a artéria do pescoço, antes de avançar, ainda mais carniceiro e
feroz, sobre meu avô João Cândido. Albertina e Valentina jamais se recuperaram
do choque e do horror daquela noite. Nunca mais atravessaram o portão e o piano
foi doado ao orfanato. Doentes, definhavam a olhos vistos. Com elas murcharam todas
as flores, menos as saudades que desabrochavam sob as três janelas do quarto
onde Eulália as encontrou de mãos dadas, numa linda manhã de sol, dormindo seu
último sono. Faz muitos anos que não volto a Itabira e o casarão é somente uma
foto em preto em branco no meu álbum de família.
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