terça-feira, 25 de junho de 2019


Doce viajado

Beatriz Vargas, Oficina de Escrita, 06/04/2019

Agência dos Correios, guichê número 2. Sou a terceira da fila. O primeiro da fila acaba de ser atendido e o casal à minha frente avança. Eu dou um passo adiante, com um livro nas mãos, cabeça baixa, olhos fixos numa página aleatória. Finjo não ouvir a conversa do casal. O homem é alto e muito magro. Olhos verdes-marijuana e pele morena, azeitonada. Ele é todo esverdeado, menos os cabelos, que são negros. Sorri. Falta-lhe um dos incisivos. Talvez não tenha quarenta anos, mas o rosto é sulcado de rugas, ressecado. A mulher é de estatura baixa. Deve ter um metro e cinquenta e oito centímetros, se tanto. Aparenta mais idade que ele. Bem mais. E tem a pele clara, cabelos castanhos claros, os olhos marrons. Na cabeça, um lenço florido, amarrado de um jeito que deixa as orelhas de fora. Nelas, pingentes de peixinhos dourados em processo de oxidação. O vestidinho curto, desbotado. Os dois calçam sandálias de borracha já bem desgastadas. Ela tira da bolsa de pano um embrulho retangular feito de papel alumínio com o lado fosco voltado pra fora. Deve ter uns trinta centímetros de comprimento, quinze de largura e uns três ou quatro dedos de altura.
- Quanto é que fica mandar esse pacote pra Sumpaulo?
E o atendente dos Correios fala que tem que pesar.
- O que é que tem aí dentro?, pergunta.
- Por quê? Você acha que é cocaína?, diz a mulher rindo de si mesma.
O atendente desafia:
- E é?
- É o quê?
- É cocaína?
Todos riem. Eu também. Ela olha pra trás e me fala:
- Hoje em dia todo mundo pensa que tem droga nesse tipo de pacote, né?
Eu ia fazer um comentário sobre o preço de dois quilos de cocaína, mas a mulher se volta novamente ao atendente do guichê número 2:
- É doce de Buriti, moço.
E o homem emenda:
- É pra nossa irmã que mora em Sumpaulo.
- Capaz de ficar mais caro mandar do que se ela comprar em São Paulo, opina o atendente.
- E o senhor acha que lá tem desse doce?
- Claro que tem! Em São Paulo a gente encontra de tudo.
- Mas desse doce aí não encontra não, moço...
- Esse veio do Piauí, informa o homem.
- Doce viajado esse, hem?!, diz o atendente soltando uma risada.
- Zomba não, moço, que você nunca comeu doce igual a esse.
- Então vale a pena mesmo? Fica por R$ 23,00.
O homem argumentou com a mulher que talvez fosse melhor falar com a irmã pra comprar doce de Buriti em São Paulo, mas ela não aceitou. Virou-se para mim, como se pedisse apoio, e falou com o rosto todo iluminado:
- Minha irmã está grávida, dona, ela tem desejo de comer doce de Buriti do Piauí, e eu é que vou dizer não pra ela? O homem me lançou um olhar envergonhado e estalou a língua nos dentes num muxoxo resignado:
- Desejo de mulher grávida ninguém pode contrariar...
A mulher enfiou a mão na bolsa de pano, tirou três notas de R$ 10,00 e entregou ao rapaz do guichê número 2.
- Vai sair um pouco mais caro, porque não dá pra ir com esse embrulho não. Tem que envolver em papel pardo, para colocar a etiqueta com o endereço, ou colocar numa caixa daquela ali, ó! – e apontou uma prateleira onde havia algumas embalagens padronizadas e envelopes de vários tamanhos.
- Pode colocar numa caixa dessas então, disse a mulher. Quanto é a caixa?
- Eu pago, disse o homem, abrindo uma carteira fininha de couro amarelo sintético.
- Primeiro vocês colocam aqui o endereço do remetente e aqui o endereço do destinatário, depois é que paga. Podem ir até aquele balcão. Ali tem uma caneta.
Os dois saíram caminhando em direção ao balcão e eu me aproximei do guichê dois.
- Bom dia. Sedex 10 pra Belo Horizonte.
E o atendente me passou um envelope pardo. A mulher do lenço florido, do balcão onde estava, perguntou em voz alta qual era o CEP de Sumpaulo. A manhã já ia avançada, perto das onze horas. Saí caminhando de volta pra casa e pensando nas histórias que minha avó contava do tempo que minha mãe era aluna de colégio interno. Minha avó lhe mandava goiabada cascão dentro de umas caixinhas de madeira com tampa de correr. Eram despachadas pelo trem de ferro, de Carangola a Manhumirim. O atendente do guichê número 2 não sabe que o amor viaja com os doces.