Rosa
Beatriz Vargas Ramos
Começava seu exercício
pela escada. Do quinto andar ao térreo são oitenta e sete degraus bem contados,
cinco vezes por semana, às oito da manhã. Tarde o suficiente para encontrar
movimento nas quadras. Cedo o bastante para fugir do calor. Às sete horas da
manhã – segundo Teia, a diarista – Rosa já teria tomado as duas xícaras de café
sem leite e sem açúcar. Teria comido uma laranja – ou uma fatia de mamão, ido duas
vezes ao banheiro e lido ao menos dois dos cinco jornais diários – os outros chegariam
por volta das dez horas da manhã. Rosa vivia só. Muitos namoros, três
casamentos. Filhos ela não quis. Deve ter fechado a porta do apartamento pouco
antes das oito e metido as chaves no bolso da bermuda jeans. Detestava essas calças sintéticas de malha agarrada ao
corpo. Vestia também uma camiseta branca de algodão. O zelador – cujo nome
agora não me vem à memória – recolhia o lixo no quinto andar. Contou que ela
desceu a escada às oito horas em ponto. No térreo, conversou com Élio, o
porteiro, sobre o aumento da taxa de empréstimo. – “Malditos banqueiros, são eles que mandam no mundo!”. (Compreendo
bem a indignação dessa frase. Justo naquele dia os jornais anunciavam a queda
da Selic). Élio ainda falou de um comentário dela sobre uma viagem. De fato, em
sua mesa de cabeceira, encontrei as passagens para San Miguel de Allende. A
viagem estava marcada para dali a um mês. No bilhete de volta, a data de 31 de
janeiro de 2012. Eu não sabia nada sobre a viagem.
Ao sair do prédio, ela teria
cortado a calçada em frente para entrar no lote retangular, um pedaço gramado e
plano da grande savana que é a cidade. Conheço-o bem. Morei dez anos nessa
mesma quadra. Eu atravessava o túnel aos domingos para pedalar no Eixão. Esse
lote é feito de enormes espaços vazios. Mas também de arbustos e árvores, mais
de quarenta, entre nativas e adaptadas. Rosa gostava das árvores do cerrado.
Ela ficava passeando, silenciosa, entre aquelas esculturas retorcidas. E seus
olhos brilhavam. Seus olhos de abismo. Seus olhos, meu abismo.
Entrei no terreno com a
intenção de refazer o que poderia ter sido seu caminho naquela manhã. Sob a
copa frondosa do pequizeiro solitário, uma coruja vigiava o ninho escavado na
terra que forma ali uma pequena elevação. “Bicho
estranho” – me olhava como se guardasse segredos. Com quinhentos passos, pouco
mais ou pouco menos, cheguei à extremidade norte do terreno. Ali, em outubro de
1979, plantamos um ipê amarelo. Não vingou. Aquele foi o ano em que Rosa e a
tia se instalaram na quadra. Antes, seus pais se exilaram em Santiago. Ele morreu
na prisão do Estádio Nacional do Chile no final de 1973. O corpo nunca foi encontrado.
“Jogado no rio Mapocho, como muitos
outros” – Rosa dizia. A mãe, que no mesmo ano conseguira sair de Santiago, morreu
de tuberculose na capital da Suécia, em 1975. E Rosa: – “Como é que alguém pode morrer de tuberculose em Estocolmo?!” Com a
morte da tia, sobravam alguns parentes em Minas e em São Paulo. Entre todos os
seus amigos de infância, eu era o único que a encontrava com alguma frequência,
apesar da falta de tempo, da família, da correria do trabalho. Juntos, tomamos
alguns porres fenomenais, escondemos maconha em jardins alheios para escapar da
polícia, tramamos revoluções que jamais aconteceram. Também nos amamos (tenho a
impressão de que eu já disse isso...). Ao nosso modo, éramos unidos, apesar de
separados. Ah, seu eu fosse Rimbaud, faria um poema para a minha Rosa! Por que
não fugimos para Paris em 89?
Daquele ponto, ela teria
virado à direita e seguido de costas para o oeste, descendo a calçada. Eu sei
disso, porque Dionísio, o rapaz do caixa da casa lotérica, descera do ônibus no
Eixinho Leste e passara por ela naquele lugar. Ele viu quando Rosa atravessou a
via interna e alcançou a quadra abaixo. Disse-me que daí ela teria seguido pela
esquerda, no sentido sul-norte. Às oito horas e vinte minutos, encontraria Apolo,
seu antigo professor de clarineta – ele confirmaria a hora desse encontro.
Cumprimentaram-se. Conversaram por alguns minutos. Nada de incomum. Às oito e
meia, Rosa passaria por Selene, outra vizinha da quadra – uma solteirona
varapau de sessenta anos de idade que ama a seus Lulus da Pomerânia sobre todas
as coisas. Eu estava agora no que pode ter sido o segundo trecho da caminhada
de Rosa. Uma longa trilha em linha reta, entre a sequência de prédios e a via
interna, cercada de árvores pelos dois lados. Nelas, uma parte do passado
esculpido a canivete. Os mastros de pau-ferro traziam nossos registros adolescentes
de flechas e corações. Mais ou menos às oito e meia, ela deve ter alcançado o jacarandá
– de onde, agora, o passarinho me contava: “Bem-te-vi!”. A cidade estava
desperta. Um dia como outro qualquer. Monotonia do céu de agosto. A saudade é
azul.
Em torno dos quarenta minutos
de caminhada, ela deve ter pegado o caminho de volta, por causa do horário de
trabalho. É esse o provável trecho final de seu percurso. A trinta e cinco
passos do final da calçada para dentro, sobre um canteiro de caliandras,
encontraram uma sacola de pano. Dentro, a carteira de identidade da Rosa. Selene
foi a última pessoa a cumprimenta-la naquela manhã. Disse não ter reparado nada
de estranho. Não existe qualquer outro registro de sua presença em nenhum outro
lugar naquele dia.
Algumas pessoas falam que
Rosa queria ir embora. Outras acreditam que ela foi sequestrada. Apolo sustenta
que foi abduzida. Eu gosto de pensar que tirou férias sem aviso. Sonho com ela
atravessando um portal luminoso no meio das aroeiras que mais a impressionavam.
O que me dói é não saber o que lhe aconteceu. Retornei muitas vezes aos mesmos
lugares, com a mesma esperança tola de achar alguma pista ou, quem sabe, de
vê-la caminhando de volta, como num túnel do tempo, em minha direção. Por
semanas seguidas esquadrinhei os troncos das árvores em busca de alguma
mensagem escrita. Um dia, num daqueles troncos lisos, bem em frente ao local
onde morava Rosa, encontrei um poema inteiro. Eu o copiei na última folha do
livro que levava comigo:
“A
menina que fui – conheço-a, é claro.
Tenho umas fotos de sua
vida breve.
Sinto certa pena de
alguns versinhos.
Lembro-me de alguns
eventos.
Mas, para que este que está comigo
ria e me abrace,
recordo só uma historinha:
o amor de infância daquela feinha.
[Riso]”.
Pesquisei. O poema é de
Wislawa Szymborska, mas foi a Rosa quem o gravou. Disso eu tenho absoluta certeza. (Oficina da Escrita – 02/04/2018)
Nenhum comentário:
Postar um comentário