segunda-feira, 6 de agosto de 2018

O superdireito penal não é direito

O artigo que se segue, de minha autoria, foi publicado em 2008, no caderno mensal C&D - Constituição e Democracia, do Grupo de Pesquisa "Sociedade, Tempo e Direito", da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - UnB. Agora, em 2018, 10 anos depois, resolvi publicá-lo aqui no blog, nesse momento em que se realizam, no Supremo Tribunal Federal, as audiências públicas na ADPF nº 442, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2017. O pedido formulado na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) é a descriminalização do aborto até a 12ª semana da gestação. 

O superdireito penal não é direito
Beatriz Vargas Ramos

É impressionante a notícia de que, no Mato Grosso do Sul, nove mil, oitocentas e oitenta e seis fichas médicas, apreendidas pela polícia numa clínica em Campo Grande, podem gerar a acusação formal de pelo menos duas mil e oitocentas mulheres por crime de aborto. Os procedimentos teriam sido realizados entre 1999 e 2007. Médica e empregados da clínica, segundo a imprensa, respondem a processo instaurado por denúncia de abril do ano passado. Há notícia de que vinte e cinco mulheres já estão cumprindo pena. Fala-se em força-tarefa, processos conjuntos, audiências coletivas, tudo no interesse da celeridade dos julgamentos, para evitar a prescrição e a impunidade.
Quase três mil mulheres em um só inquérito policial (isso para não falar da própria médica que, sozinha, seria responsável pela soma de todos os casos)! Ora, nada de mais... Em tempos de globalização e do deus mercado, a máquina punitiva deve exibir capacidade produtiva, eficiência de resultados. É a justiça penal no atacado! Para se ter uma ideia do que representa essa formidável persecução, basta lembrar que a população feminina encarcerada em todo o País está em torno de 25 mil, segundo informações divulgadas em 2007. Deste total, 30,2%, ou seja, algo em torno de 9 mil mulheres, por tráfico de drogas (dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias - Infopen, do Ministério da Justiça). Um procedimento dessa proporção 2,8 mil é número correspondente a 11,2% do número total de presas no Brasil - só pode ter grandes pretensões. É, sem dúvida, o superdireito penal em ação! Virtuoso, intolerante com o crime e que promete salvar a sociedade do aborto já se sabe que o exemplo da superdiligência de Campo Grande inspirou outras investidas policiais em clínicas suspeitas de diversos lugares do País.
O caso chama atenção por outros aspectos de importância para o debate público sobre o assunto. Destaca-se o castigo aplicado às mulheres: a pena substitutiva de prestação de serviços comunitários será cumprida em creches e escolas, para que as condenadas estabeleçam contato rotineiro com crianças de várias idades. O juiz afirma que a escolha não é arbitrária, porque representa uma oportunidade de reflexão sobre a maternidade. A pena, de inspiração didático-correcional, é, numa palavra, cruel, pela simples razão de que está apta a potencializar o sofrimento emocional da mulher que acaba de passar pela experiência do aborto. No contexto do proibicionismo mais rotundo, em que qualquer possibilidade de diálogo está fechada a priori, pela definição vertical do objeto como o mal a ser evitado, a completa ausência de aconselhamento antes do ato é substituída pela tortura psicológica depois de sua consumação. Tortura que tem como alvo a mulher, pouco importando o fato de que a decisão pelo aborto tenha sido, eventualmente, tomada por um hipotético casal. Será que o não indiciamento de homens é um dado relevante ou será que nenhuma daquelas crianças não nascidas teria pai?! Convém esclarecer que, com isso, não se está sustentando que a punição deve ser ampliada. O que se quer é realçar um aspecto comum à generalidade dos casos de apenação por aborto, qual seja, o desinteresse, por parte do sistema penal, pela busca e identificação de culpados do sexo masculino. Aqui, a censura, relacionada à moral sexual, é desigualmente distribuída. Dirige-se à mulher, como reforço de seu papel social como mãe e, ao mesmo tempo, como reafirmação da liberdade sexual do homem. Uma mulher solitária algemada a um leito de hospital é a cena que melhor representa o conceito profundamente enraizado na cultura proibicionista do aborto. Nesse terreno tão propício à fecundação de outras sementes humanas, como as da misoginia, do moralismo e do preconceito, punível é o gênero.
É fato que o espetáculo de eficiência criminal produz um volume de acusações capaz de abarrotar, ou paralisar, a 2.ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande, mas quando se sabe que a projeção do número nacional de abortos clandestinos, por ano, está na casa dos milhões, tem-se que reconhecer desde que se queira renunciar às últimas consequências do absurdo o erro de tratar o assunto como caso de polícia. Nesta situação, convocar a pena criminal é, por um lado, ignorar a questão de fundo, fechar o debate e fazer vistas grossas à realidade social. Por outro lado, é desmoralizar o direito penal, expondo a justiça ao ridículo. Ações dessa natureza são retóricas, simbólicas, propagandísticas. Prestam-se à promoção do espetáculo, mas não são sérias.
Um direito penal assim não serve à sociedade, não tem utilidade, por duas razões básicas: primeira, não é capaz de cumprir a promessa de prender e castigar pelo crime de aborto na proporção em que a ação descrita no tipo penal é praticada está desacreditado; segunda, se a promessa for cumprida, implanta-se o regime da violência neste caso, não há mais direito penal, está deslegitimado.
Às vezes, o absurdo revela mais que o argumento equilibrado, despido de paixões e moralismos: a sociedade aceita as conseqüências de um superdireito penal? A expectativa social a respeito do aborto é o encarceramento - ou qualquer outro modo mais criativo de castigo - para multidões de mulheres? Impor a pena criminal a uma população de milhões só vai demonstrar que a criminalização não tem respaldo, a não ser numa certa moral oficial.
Há consenso de que a vida humana deve ser protegida, mas nem todos concordam que a decisão pelo aborto seja o mesmo que a decisão pelo assassinato de uma criança indefesa. Ser contra o aborto não é, necessariamente, ser a favor de sua definição legal como delito. O exercício do Poder Legislativo de seleção de condutas que deverão constituir crime não se confunde com o poder de impor convicções éticas, religiosas ou morais.
Se o princípio da legalidade não se satisfaz com a mera obediência de ordem formal, é inegável a existência de um conteúdo normativo que necessita de aprovação social como condição de legitimidade do Direito. Não é legítimo um direito que contraria a realidade social dos fatos e se mostra incapaz de afetar o resultado a que se propõe impedir. Ao proibicionismo não se pode atribuir eficácia no sentido da redução do aborto. É, isto sim, responsável, em parte, pelo aumento do índice de criminalidade e, sobretudo, pela morte de mulheres pobres que não podem pagar por serviços médicos particulares (é a terceira causa de mortalidade entre a população feminina).
Quando a incriminação de um comportamento deixa de corresponder à opinião de uma grande massa de cidadãos, desaparece a justificativa democrática para manutenção da lei. Se, por hipótese, ainda que absurda, o cumprimento geral do preceito penal fosse possível, por qualquer razão, poder-se-ia falar em mais justiça para todos os envolvidos? Os efeitos de um suposto acatamento absoluto à lei penal seriam positivos em todos os casos? Haveria apenas uma minoria prejudicada?
Por incrível que possa parecer aos mais desavisados, a legalização do aborto é o primeiro passo no sentido da redução de sua incidência e pode contribuir para com a melhoria das condições de saúde de mulheres e crianças brasileiras. O problema só pode ser visto em sua verdadeira dimensão se o rótulo criminal for retirado e a mulher puder falar de seu lugar próprio, fora das quatro paredes de uma sala de interrogatório.



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