O artigo que se segue, de minha autoria, foi publicado em 2008, no caderno mensal C&D - Constituição e Democracia, do Grupo de Pesquisa "Sociedade, Tempo e Direito", da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - UnB. Agora, em 2018, 10 anos depois, resolvi publicá-lo aqui no blog, nesse momento em que se realizam, no Supremo Tribunal Federal, as audiências públicas na ADPF nº 442, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2017. O pedido formulado na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) é a descriminalização do aborto até a 12ª semana da gestação.
O superdireito penal
não é direito
Beatriz Vargas Ramos
É impressionante a notícia de que,
no Mato Grosso do Sul, nove mil, oitocentas e oitenta e seis fichas médicas,
apreendidas pela polícia numa clínica em Campo Grande, podem gerar a acusação
formal de pelo menos duas mil e oitocentas mulheres por crime de aborto. Os
procedimentos teriam sido realizados entre 1999 e 2007. Médica e empregados da
clínica, segundo a imprensa, respondem a processo instaurado por denúncia de
abril do ano passado. Há notícia de que vinte e cinco mulheres já estão
cumprindo pena. Fala-se em força-tarefa, processos conjuntos, audiências
coletivas, tudo no interesse da celeridade dos julgamentos, para evitar a
prescrição e a impunidade.
Quase três mil mulheres em um só
inquérito policial (isso para não falar da própria médica que, sozinha, seria
responsável pela soma de todos os casos)! Ora, nada de mais... Em tempos de
globalização e do deus mercado, a máquina punitiva deve exibir capacidade
produtiva, eficiência de resultados. É a justiça penal no atacado! Para se ter
uma ideia do que representa essa formidável persecução, basta lembrar que a
população feminina encarcerada em todo o País está em torno de 25 mil, segundo
informações divulgadas em 2007. Deste total, 30,2%, ou seja, algo em torno de 9
mil mulheres, por tráfico de drogas (dados do Sistema Integrado de Informações
Penitenciárias - Infopen, do Ministério da Justiça). Um procedimento dessa
proporção 2,8 mil é número correspondente a 11,2% do número total de presas no
Brasil - só pode ter grandes pretensões. É, sem dúvida, o superdireito penal em
ação! Virtuoso, intolerante com o crime e que promete salvar a sociedade do
aborto já se sabe que o exemplo da superdiligência de Campo Grande inspirou
outras investidas policiais em clínicas suspeitas de diversos lugares do País.
O caso chama atenção por outros
aspectos de importância para o debate público sobre o assunto. Destaca-se o
castigo aplicado às mulheres: a pena substitutiva de prestação de serviços
comunitários será cumprida em creches e escolas, para que as condenadas estabeleçam
contato rotineiro com crianças de várias idades. O juiz afirma que a escolha
não é arbitrária, porque representa uma oportunidade de reflexão sobre a
maternidade. A pena, de inspiração didático-correcional, é, numa palavra,
cruel, pela simples razão de que está apta a potencializar o sofrimento
emocional da mulher que acaba de passar pela experiência do aborto. No contexto
do proibicionismo mais rotundo, em que qualquer possibilidade de diálogo está
fechada a priori, pela definição
vertical do objeto como o mal a ser evitado, a completa ausência de
aconselhamento antes do ato é substituída pela tortura psicológica depois de
sua consumação. Tortura que tem como alvo a mulher, pouco importando o fato de
que a decisão pelo aborto tenha sido, eventualmente, tomada por um hipotético
casal. Será que o não indiciamento de homens é um dado relevante ou será que
nenhuma daquelas crianças não nascidas teria pai?! Convém esclarecer que, com
isso, não se está sustentando que a punição deve ser ampliada. O que se quer é
realçar um aspecto comum à generalidade dos casos de apenação por aborto, qual
seja, o desinteresse, por parte do sistema penal, pela busca e identificação de
culpados do sexo masculino. Aqui, a censura, relacionada à moral sexual, é
desigualmente distribuída. Dirige-se à mulher, como reforço de seu papel social
como mãe e, ao mesmo tempo, como reafirmação da liberdade sexual do homem. Uma
mulher solitária algemada a um leito de hospital é a cena que melhor representa
o conceito profundamente enraizado na cultura proibicionista do aborto. Nesse
terreno tão propício à fecundação de outras sementes humanas, como as da
misoginia, do moralismo e do preconceito, punível é o gênero.
É fato que o espetáculo de
eficiência criminal produz um volume de acusações capaz de abarrotar, ou
paralisar, a 2.ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande, mas quando se sabe
que a projeção do número nacional de abortos clandestinos, por ano, está na
casa dos milhões, tem-se que reconhecer desde que se queira renunciar às últimas
consequências do absurdo o erro de tratar o assunto como caso de polícia. Nesta
situação, convocar a pena criminal é, por um lado, ignorar a questão de fundo,
fechar o debate e fazer vistas grossas à realidade social. Por outro lado, é
desmoralizar o direito penal, expondo a justiça ao ridículo. Ações dessa
natureza são retóricas, simbólicas, propagandísticas. Prestam-se à promoção do espetáculo,
mas não são sérias.
Um direito penal assim não serve à
sociedade, não tem utilidade, por duas razões básicas: primeira, não é capaz de
cumprir a promessa de prender e castigar pelo crime de aborto na proporção em
que a ação descrita no tipo penal é praticada está desacreditado; segunda, se a
promessa for cumprida, implanta-se o regime da violência neste caso, não há
mais direito penal, está deslegitimado.
Às vezes, o absurdo revela mais
que o argumento equilibrado, despido de paixões e moralismos: a sociedade
aceita as conseqüências de um superdireito penal? A expectativa social a
respeito do aborto é o encarceramento - ou qualquer outro modo mais criativo de
castigo - para multidões de mulheres? Impor a pena criminal a uma população de
milhões só vai demonstrar que a criminalização não tem respaldo, a não ser numa
certa moral oficial.
Há consenso de que a vida humana
deve ser protegida, mas nem todos concordam que a decisão pelo aborto seja o
mesmo que a decisão pelo assassinato de uma criança indefesa. Ser contra o
aborto não é, necessariamente, ser a favor de sua definição legal como delito.
O exercício do Poder Legislativo de seleção de condutas que deverão constituir
crime não se confunde com o poder de impor convicções éticas, religiosas ou
morais.
Se o princípio da legalidade não
se satisfaz com a mera obediência de ordem formal, é inegável a existência de
um conteúdo normativo que necessita de aprovação social como condição de
legitimidade do Direito. Não é legítimo um direito que contraria a realidade
social dos fatos e se mostra incapaz de afetar o resultado a que se propõe
impedir. Ao proibicionismo não se pode atribuir eficácia no sentido da redução
do aborto. É, isto sim, responsável, em parte, pelo aumento do índice de
criminalidade e, sobretudo, pela morte de mulheres pobres que não podem pagar
por serviços médicos particulares (é a terceira causa de mortalidade entre a
população feminina).
Quando a incriminação de um
comportamento deixa de corresponder à opinião de uma grande massa de cidadãos,
desaparece a justificativa democrática para manutenção da lei. Se, por
hipótese, ainda que absurda, o cumprimento geral do preceito penal fosse
possível, por qualquer razão, poder-se-ia falar em mais justiça para todos os
envolvidos? Os efeitos de um suposto acatamento absoluto à lei penal seriam
positivos em todos os casos? Haveria apenas uma minoria prejudicada?
Por incrível que possa parecer aos
mais desavisados, a legalização do aborto é o primeiro passo no sentido da
redução de sua incidência e pode contribuir para com a melhoria das condições
de saúde de mulheres e crianças brasileiras. O problema só pode ser visto em
sua verdadeira dimensão se o rótulo criminal for retirado e a mulher puder
falar de seu lugar próprio, fora das quatro paredes de uma sala de
interrogatório.
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