quarta-feira, 16 de janeiro de 2019


Sem pressa

Procurava pelo lugar como o caminhante do deserto busca um oásis. A porta, lilás de maçanetas brancas, estava entreaberta, mas não havia dúvidas de que se tratava do espaço feminino. A plaquinha fixada à entrada trazia a gravura envelhecida de uma jovem de perfil, cabelo curto, a Chanel, segurando entre os dedos uma longa piteira. Luz acesa. Movi a porta devagar, com cuidado para não surpreender uma possível ocupante distraída. Não havia ninguém. Tranquei a porta e me acomodei sobre o assento branco, limpo e macio do vaso sanitário lilás. E dali, daquele trono que me pertenceria pelo tempo necessário, pude observar ao meu redor, enquanto reduzia o peso de algumas taças do último Torrontés Colomé daquela noite. Não tinha mais pressa. A mesa, agora, estaria bem mais próxima do banheiro.
Banheiro grande. Um basculante redondo na parede à minha direita, alto o suficiente para afastar espiões, franqueava a passagem ao ar e aos ruídos – os de fora e os dentro. À minha frente, a parede sem azulejos, pintada da mesma cor lilás, com dois quadros sem moldura alinhados na horizontal. No primeiro, Super Man e, no segundo, Homem Aranha. De costas um para o outro, sentados em privadas iguais, com caixa de descarga acoplada. Os dois com jornal em punho e calças arriadas – quando foi que trocaram seus colantts por duas peças? Na parte inferior das gravuras, letras engraçadas traduziam a moral da cena: “Não tenha pressa, o mundo pode esperar”.
Abaixo dos super-heróis, a pia instalada em bancada ampla de mármore branco, toalhas de pano à direita e do outro lado um frasco de sabonete líquido alaranjado. Perto dele, toalhas de papel dentro de uma cesta de vime com fitas cor de rosa. Abuso de lilás e rosa. Um copo de plástico amaçado e caído ao pé do cano que descia da pia até bem rente ao chão. À minha esquerda, um espelho comprido de madeira entalhada e um vaso de barro bojudo de onde se erguia uma palmeira de tamanho mediano, de um tom verde tão profundo e uniforme que me pareceu artificial. No teto, um lustre em forma de flor. Duas arandelas gêmeas de cada lado da pia. Luz fraca, amarelada.
Foi no momento em que me levantava para tocar a palmeira que eu a vi. Arrastava-se em direção à fresta da porta. Procurava a saída, com certeza, e naquele instante calculei que talvez pudesse voltar, aterrorizando-me. Esteve ali o tempo todo e eu não a havia enxergado. Recuei até o fundo da parede à direita, a do basculante, sem tirar os olhos do bicho asqueroso. Lento, meio tonto, tinha o abdômen parcialmente esmagado e deixava um rastro fino de baba escura. Ainda mais escura no contraste com o piso de porcelanato branco. Tive ânsia de vômito.
O basculante aberto, de repente, me pareceu ameaçador – outras baratas poderiam entrar por ali, voando. Tentei fechá-lo, mas tinha agarrado. Só aí notei que o vidro estava quebrado. Fui até a pia, esgueirando-me pela parede, olhos fixos na Periplaneta. Foi então que ela parou. Por um momento, estacionada, até a fazer um movimento rápido e ameaçador de meio círculo e, novamente, estancar em linha paralela com a base da porta. As antenas se mexiam rapidamente e tive certeza de que já tinha minha localização exata. Quis gritar. Demorou algum tempo para que eu agarrasse uma das toalhas de pano. Planejava arremessá-la sobre a criatura, quando notei que ela já não se movia mais. Havia se debatido na mesma posição até estacionar por completo.
Um cheiro de dama da noite invadiu o ar que entrava pelo basculante e a baba escura se transformara em mercúrio prateado. Foi quando pude ouvir as três batidas na porta.
Beatriz Vargas Ramos – Oficina de Escrita – 18/02/2018

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