Vontade de mar
Houve uma época em que
o mar não importava tanto. No dia-a-dia da vida de trabalho duro da fábrica e
no intervalo entre uma e outra jornada, descontado o percurso interminável do
transporte ruim, consumida pelo sono e pelo cansaço, não lhe sobrava o luxo do tempo
para pensar. Nos domingos solitários, com o dinheiro contado, se dedicava a
conhecer um pouco mais da cidade grande, longe de sua terra. Nem seria preciso
dizer, tinha nascido no litoral, num povoado de pescadores, como seu pai, onde
a pobreza castigava e só fazia aumentar. Havia crescido junto com o irmão mais
velho que partira em busca de trabalho na capital. Um dia chegou sua vez.
Despediu-se do pai e da mãe, não haveria outro abraço. De vez em quando, uma
carta, até que não chegou mais nenhuma. E veio o dia em que a última carta foi
devolvida – “destinatário ausente”. Aconteceu no ano em que foi demitida da
fábrica e daí em diante só conseguiu emprego em casa de família. Depois veio o
dia em que não voltou mais ao trabalho, foi o dia em que sentiu vontade de mar.
A água toca,
agradavelmente, e balança o corpo. O cheiro forte do mar, o gosto do mar. Somente
a mão esquerda se ergue e tateia em busca do frasco deixado sobre a beirada da banheira.
Banheira velha e carcomida, de onde, agora, se recordava do povoado, esquecida
da pobreza daquela vida de antes. A verdadeira pobreza é ausência de mar.
Sussurra uma voz de
dentro:
- “Se abrires os olhos...”.
- “Eu sei”, responde em
pensamento.
- “Amanhã o encontrarás,
espera e o terás”.
- “Não. É hoje o dia”.
A mão toca o frasco que
escorrega e cai no piso azulejado e é preciso abrir os olhos para encontrá-lo. Afasta
a cortina de plástico, vira o corpo um pouco mais e estica-se até conseguir apanhá-lo.
Quase flutua na água tíbia. Respiração calma, calculada. Era noite escaldante
de verão com lua crescente a meio céu. No banheiro, à luz de uma única vela, é
como na infância de mar e estrelas. Tinha gravada na memória a imagem de
constelações que distinguia a olho nu. O primeiro desafio era encontrar, em
meio à aparente confusão de muitos pontos brilhantes, as estrelas enfileiradas,
as Três Marias, como os pescadores lhe haviam ensinado. Ali, nesse mapa
rudimentar, e de olhos fechados, traçava uma linha reta, da direita à esquerda,
e subia até encontrar a estrela amarela, cujo nome, se ela o conhecesse, teria
gostado de pronunciar. Era Aldebarã, no olho esquerdo do touro celeste. Ela seguia
intuitivamente o caminho secular ao encontro de Touro, a partir dos três pontos
do Cinturão de Órion. E mais acima, ainda em Touro, um conjunto de brilho
intenso, onde se demorava até conseguir enxergar todas as sete estrelas que não
sabia nomear. Eram as Sete Irmãs, as Plêiades, que ela, em sua própria
mitologia, chamava de Seichu.
Uma aragem abranda o
calor da noite e, sob a água, ouvem-se as batidas surdas, ritmadas, do coração.
De volta à posição
anterior, olhos fechados, engole dois comprimidos. “Destinatário ausente” –
pensou. Um suspiro profundo e o cheiro forte de desinfetante que vinha do ralo,
junto ao cano da pia – tinha lavado cuidadosamente o banheiro antes da imersão.
Só teve um namoro, mas durou tão pouco que nem tinha deixado muito do que se
lembrar. Do nome do moço ela se não se esqueceu, Aquernar, Akhir al Nahr, o “fim
do rio”.
Abre de novo a torneira
e ergue as pernas dobradas, de modo a colocar os pés apoiados naquela extremidade
e impulsiona de leve o corpo até a cabeça tocar o lado oposto da banheira. É um
barco à deriva, solto no mar, no alto mar, sem orientação, sem bússola nem sextante,
invisível a toda criatura do mar, da terra ou do céu, inalcançável para
qualquer sistema de posicionamento global. Ninguém sentirá sua falta. Ninguém.
Leva o frasco à boca.
Sem hesitação, mas sem pressa, vai engolindo os comprimidos todos. Começa a
ouvir as ondas batendo na areia, a banheira transborda. As estrelas vão
sumindo, enquanto o céu vai-se clareando como se fosse amanhecer. Vênus ainda
resiste, mas será por pouco tempo. “Dorme”, sussurra de novo uma voz de dentro.
Ela sorri. O sono vai chegando aos poucos, a cabeça pendida acima da água
abundante e, imersos, tórax e ventre e pernas e braços. Naquela hora alguém
liga o rádio, uma criança chora e, em seguida, ouve-se um rumor atarefado de
panelas em alguma cozinha próxima. Pela porta aberta, entra o vento que de tão
leve não pode mover a cortina de plástico azul de estampas indecifráveis à luz
da vela prestes a se consumir – seriam ampulhetas ou talvez conchas abertas...
como asas...
Agora tudo é silêncio e
o mar clorado inunda o piso.
Beatriz Vargas Ramos
– Oficina de Escrita – 26/02/2018
é amor puro.....
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