Papo de advogado nº 2
José Pacífico
A rodoviária fica no mesmo nível da
estrada e, de lá, vejo a cidade incrustrada naquele trecho da Serra do
Espinhaço. A visão é apaixonante. Ladeira abaixo, escorrega o casario branco de
telhados vermelhos. Copas repolhudas de árvores bem distribuídas entre os
quintais. Também dali, levantando os olhos à altura da serra, posso ver o pico
do Itacolomi – o curumim feito de pedra, filho da pedra grande. Cidade de
muitas igrejas, minas e museus, onde vejo mortos passeando pelas ruelas de
pedra. E não são zumbis. São homens, mulheres e crianças mesclados de tal modo
aos outros transeuntes que nem seria possível reconhece-los se não fosse pelas
vestes antigas, os adereços, seus modos, seu olhar. Ah, como me olham! Às vezes
sorriem. Eles não falam, apenas gesticulam, mas sem afetação. Indicam algum
caminho, me apontam uma casa, um objeto. Em Ouro Preto as almas estão por todos
os lugares.
Cheguei pela manhã, quase às oito
horas. Desci do ônibus carregando minha bolsa a tiracolo e a pasta de couro
falso com os documentos do caso. Meu encontro com o delegado de polícia estava
marcado para as nove e meia, de modo que dava tempo para comprar a passagem de
volta. Trazia comigo o alvará de soltura do cliente, José Pacífico, estudante
de geologia. Por causa de um vaso de maconha exposto na janela do “Hospício”,
no Centro de Habitação Estudantil, o garoto tinha sido preso em flagrante por
tráfico. Habitava uma cela na cadeia local há exatos 8 meses e 23 dias. Eu
vinha otimista com a perspectiva de sair da delegacia naquele dia junto com ele
antes da hora do almoço. Talvez “meu” alvará chegasse antes que o documento
expedido pelo tribunal na noite anterior. Naquela época, era comum que os
advogados levassem os alvarás pessoalmente ao delegado.
Desci a pé até a Praça Tiradentes e
parei no Café Ópera. Um cheiro delicioso de bolo no forno e o gosto do pão
quentinho untado de manteiga e geleia de jabuticaba. Era outubro. Naquela hora,
começavam a abrir as portas do comércio. Pessoas surgindo de não sei onde,
varriam a frente das lojas, recolocavam as peças de pedra sabão sobre o
parapeito das janelas, penduravam as placas de volta ao mesmo lugar de ontem.
Nas calçadas estreitas, espalhavam-se grandes balaios de vime e mesinhas de
artesanato. Panos coloridos sobre as grades das varandas, cestas de flores,
mulheres janeleiras com lenço nos cabelos. Ali me demorei o tempo necessário
para não perder a hora marcada. Depois, tomei a Rua Direita e segui para a
delegacia, perto do chafariz. Lá, um aglomerado de estudantes veio ao meu
encontro. Eu havia falado por telefone com um dos colegas de república do
Pacífico, o Caio Freitas, e ele tinha organizado uma recepção para o amigo, ali
mesmo, no meio da rua, do lado de fora da “delega” – como diziam. Agora ele me
trazia uma notícia estranha.
- “O Pacífico não está na cela. Não
quiseram me dizer onde ele está”.
Entrei meio ofegante na pequena sala de
paredes grossas. Esperei por mais de uma hora a chegada do doutor Ribeiro, o
delegado-chefe. Apresentei o alvará. Ele disse que eu teria que aguardar o
retorno do Pacífico. Ninguém sabia dizer ao certo o que tinha acontecido, mas o
rapaz, desmaiado, fora levado às pressas, na noite anterior, para a Santa Casa
de Misericórdia. Insisti com o delegado.
- “A ordem de soltura está em suas
mãos, não vou sair sem meu cliente”.
Doutor Ribeiro era um sujeito muito
branco, de meia idade, encorpado, testa oleosa, olhos azuis. Antipático. Pediu
que trouxessem água e café. Depois de alguns minutos, e sem me olhar
diretamente, respondeu, soletrando:
- “Se e-le não es-tá a-qui, não pos-so
li-be-rá-lo”.
O telegrama do tribunal chegara à
delegacia na noite anterior e, mesmo assim, as pesquisas de praxe – outras
possíveis ordens de prisão – nem mesmo tinham começado. Voltei à rua para
avisar ao Caio Freitas o que estava acontecendo. Outros estudantes haviam se
juntado ao grupo original. “Hospício”, “Calabouço”, “Adega”, “Necrotério”,
“Sinagoga” e outras tantas repúblicas ali estavam bem representadas. Nessa
altura, o delegado já havia concordado em tomar as providências de soltura. Da
sala do doutor Ribeiro fui para a recepção, onde fiquei esperando a ordem. Na
saída, o delegado perguntou:
- “A senhorita não prefere trabalhar
com direito de família, doutora? Delegacia não é lugar para mulher”.
Dessa vez ele me olhou com seus olhinhos
miúdos de roedor. Levantou a mão direita para o gesto de despedida. Eu peguei aquela
mão no ar e apertei com segurança.
- “Bom trabalho, Dr. Ribeiro. E obrigada”.
Segui de viatura para a Santa Casa, na
companhia de dois policias. Caio Freitas seguiu a pé com o restante da turma.
Era uma procissão de estudantes. Encontrei José Pacífico algemado numa cama de
enfermaria. Com ele, outro policial sentado ao lado da cama. Minutos depois, eu
e o cliente estávamos sós. Todos os leitos vazios. Uma enfermeira magricela acabava
de deixar a sala. Ele estava bem, apesar do rosto machucado. Caio e os outros
amigos já deveriam ter chegado ao hospital. Em alguns minutos José Pacífico teria
alta. Olhei enternecida aquele rapaz de cabeleira castanha e bochechas de
adolescente. Ele era seis anos mais jovem que eu. Perguntei se não tinha fome. Ajeitou-se
na cama e com uma voz pedinte me falou:
- “Doutora Bia, a minha plantinha, o
meu vaso, sabe dizer onde foi parar?”
Beatriz
Vargas Ramos
Oficina de Escrita – 05/03/2018
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