segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Muros e túneis, uma arquitetura da violência
Beatriz Vargas Ramos

Um trecho específico me chamou a atenção em um programa de TV que foi ao ar pela Band, em 21/07/2014. O repórter estava no centro de Jerusalém. Encontrou uma manifestação de apoio ao bombardeio promovido pelo governo de Israel na Faixa de Gaza e escolheu uma jovem, aparentemente ainda na adolescência, para responder à seguinte pergunta:
Por que vocês estão aqui nesta noite?
A jovem estava na companhia de outros tantos jovens, alguns adultos e até crianças. Quase todos portavam bandeiras de Israel. Ela deu a seguinte resposta:
É nosso dever. É bom para o mundo todo. O Hamas quer nos matar, só porque somos judeus e isso é um erro”.
Seguiu-se outra pergunta sobre como chegar à paz em meio a tanta violência e a jovem respondeu que não iria falar de paz, insistindo na mesma afirmativa anterior: “O Hamas quer apenas nos matar”. Uma simples frase, uma frase impressionante.
Ninguém que disponha de um mínimo de informação sobre os conflitos entre Israel e Palestina vai levar a sério a “explicação” da jovem israelense entrevistada. A frase – “just because we’re jews” – não é apenas a simplificação de um problema complexo de dimensões catastróficas, sobretudo para os palestinos, é também, e paradoxalmente, um exagero, o da vitimização. Exibe as indisfarçáveis notas de uma auto-defesa comiserativa e, ao mesmo tempo, oculta outras explicações possíveis e, assim, funciona como um esforço de justificação para os ataques brutais e para o tratamento desumano dispensado a milhares de palestinos, ao longo de um processo que já se aproxima da marca dos 70 anos.
O que diz a jovem israelense manifestante é, no entanto, o que uma grande quantidade de pessoas, sobretudo dentro de Israel, repete, ressoa, repercute, reproduz à exaustão, até o ponto de acreditar na versão de que a violência do Hamas contra Israel possa ser reduzida à lógica do “ódio aos judeus”. Não deixa de ser um recurso de auto-imunização contra a violência praticada contra outros seres humanos.
Penso que nos dias atuais é cada vez menor o número de pessoas às quais pareça convincente o argumento de que a violência do Hamas contra Israel ou as próprias críticas ao governo israelense, mesmo as mais duras, sejam diferentes expressões de uma mesma coisa, ou seja, de antissemitismo.
Não que o antissemitismo e, de resto, qualquer tipo de preconceito étnico tenham sido banidos da face da terra. Sabemos que não. Pensar que a derrota dos fascismos e o repúdio à experiência da Shoá, para não dizer “holocausto” – algo que nunca mais deverá ser repetido – sejam a garantia do fim dos preconceitos é crença que supera até mesmo os limites da pura ingenuidade. É inegável, entretanto, que hoje em dia – para dizer muito pouco – existem menos antissemitas no mundo do que havia até a Segunda Guerra Mundial. Além disso, um discurso antissemita ou um discurso preconceituoso em geral – para dizer um pouco mais – não é o tipo de fala que se faz atualmente em praça pública, sem atrair reações fundadas na defesa dos direitos humanos, parâmetros de respeito à dignidade humana que, sem dúvida, se tornaram mais fortes depois que a história do extermínio nazista foi narrada em primeira pessoa para o mundo inteiro. Basta lembrar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas data de dezembro de 1948. No mesmo ano, em maio, foi oficialmente instituída a criação do Estado de Israel. Um discurso de preconceito não tem legitimidade política.
Israel, justamente por ser um Estado pequeno, ou para usar da expressão com que o porta-voz do governo de Israel, Yigal Palmor, se referiu ao Brasil, um Estado “anão”, já foi visto no passado como Davi diante de Golias. Essa imagem bíblica bem representou a vitória de Israel contra a coligação árabe formada pelo Egito, Jordânia e Síria, seguida da ocupação militar israelense da Cisjordânia e da Faixa da Gaza, das Colinas de Golã e da Península do Sinai.
Naquele tempo, ano de 1967 – eu tinha lá meus 6 anos de idade – a vitória israelense arrasadora, particularmente humilhante para Gamal Abdel Nasser, atraiu a atenção do mundo e rendeu ao pequeno país respeito e admiração da opinião pública internacional. Não é que eu traga lembranças do noticiário de 1967, mas posso dizer claramente que cresci ouvindo elogios à bravura de Israel e relatos comprobatórios da “superioridade intelectual” de seu povo e sobre a justiça da criação do seu Estado livre e independente.
Em 1967, Tony Judt, historiador inglês – e judeu – tinha 19 anos. Ele relembra, em 2006, a opinião dos estudantes na Universidade de Cambridge, na primavera de 67, “majoritariamente pró-Israel”. Afirma Judt, no ensaio intitulado O país que não queria crescer, publicado no Brasil em 2010, pela editora Objetiva (Reflexões sobre um Século Esquecido: 1901 – 2000, tradução de Celso Nogueira): “... todos prestavam pouca atenção à condição dos palestinos, ou à aliança anterior de Israel com a França e a Grã-Bretanha, que levou à desastrosa aventura em Suez, em 1956”. Acrescenta que “na política e nos círculos que elaboravam as políticas, só especialistas em assuntos árabes conservadores e antiquados criticavam o Estado de Israel; até os neofascitas chegavam a aprovar o sionismo, com base no antissemistismo tradicional”.
Ainda no meu tempo de ginásio, fiz um trabalho escolar sobre o Estado de Israel, sua criação, sua capital, bandeira, economia e, enfim, o grande destaque, o kibutz. Meu professor de geografia, disciplina para a qual o trabalho era requerido, mostrava-se especialmente entusiasmado com a experiência israelense dos kibutzim. Ele dizia que eu possuía semelhanças físicas com Anne Frank, o que me levou a pesquisar a história e buscar imagens da menina judia. À minha disposição – não havia computador, internet ou Google –, enciclopédias, livros escolares, textos de história e revistas, como O Cruzeiro, e as de circulação em língua portuguesa, como a Revista Seleções, o Reader’s Digest, que meu pai assinou por algum tempo. Tudo o que me chegou às mãos, e que representava, na verdade, as fontes de informação de maior circulação para a média dos brasileiros ou para a grande maioria dos leitores, eram textos elogiosos, relatos simpáticos e favoráveis a Israel. Nenhuma crítica a Bem-Gurion, Levi Eshkol, a Moshe Dayan ou a outros líderes israelenses. Nenhuma análise mais aprofundada ou vertical da política sionista. Nenhuma oposição consistente ao governo israelense.
Hoje esse cenário mudou. É comum a crítica ao sionismo e à política do governo de Israel. O Estado de Israel não se harmoniza mais com a imagem do Davi contra o Golias. Ao revés, está mais para um gigante, arrogante e opressor, ao menos em termos militares. Sua primeira usina nuclear foi construída ainda nos anos 60 e atualmente não se sabe ao certo o número de ogivas nucleares que possui e não se tem a exata definição do tipo e da quantidade de suas armas atômicas. Há especulações trabalhando com hipóteses diversas, entre elas a de que o arsenal nuclear israelense está no mesmo nível dos franceses e dos britânicos. Essas não são informações do tipo que se obtém com facilidade, não são alardeadas pelos Estados em geral – exceto, é claro, quando podem gerar algum tipo de proveito político e, nesse caso, carregam também a suspeita de mero blefe.
Acredito que para a maior parte das pessoas da minha geração, é facilmente perceptível, da década de 70 até o presente, o arrefecimento daquele clima geral de aprovação aos sucessivos governos de Israel. Durante meus tempos de militância no movimento estudantil universitário em Belo Horizonte, nos anos 80, a esquerda internacional já não possuía mais nenhuma ligação política com o Estado de Israel. Uma sonhada parceria entre a esquerda e Israel é algo tão implausível no presente que, talvez, falar disso aos jovens que hoje têm a idade dos meus filhos produza o mesmo efeito de uma narrativa de ficção. No movimento estudantil da minha época, a questão palestina não era tema central das discussões políticas dominadas, ao que me lembro, pelo sindicato polonês Solidariedade, pelas comemorações da “bazucada” que exterminou Anastácio Somoza, pelas manifestações contra o Ministro Ludwig, o general da pasta da Educação e, na sequência, pela Central Única dos Trabalhadores no Brasil, a política sindical no ABC paulista e a filiação – ou não – ao recém-criado Partido dos Trabalhadores.
Novamente Tony Judt, em texto produzido a partir de conversas com estadunidense Timothy Snyder, professor de história na Universidade de Yale, intitulado O King’s e os kibutzim: sionista de Cambridge (Pensando o Século XX. Trad. Otacílio Nunes. Rio: Objetiva, 2014), lembra que “Stalin foi a parteira de Israel”.
Segundo Judt, “a visão da esquerda, tanto os comunistas quanto os não comunistas, era que, por razões ideológicas e genealógicas, um Estado que abrangesse judeus do leste-europeu de origens socialistas certamente devia ser um parceiro solidário. Mas Stalin logo percebeu, mais rápido do que a maioria, na verdade, que a trajetória natural de Israel seria fazer uma aliança protetora no Ocidente, em particular levando em conta a crescente importância do Oriente Médio e do Mediterrâneo para a segurança e os interesses econômicos ocidentais”. Para o historiador inglês, “o restante da esquerda demorou a entender isso: ao longo da década de 1950 e de boa parte da de 1960, Israel ainda era associado com a esquerda política e intelectual dominante e admirado por ela”. Segue afirmando que, “na verdade, o país foi governado durante suas três primeiras décadas”, ou seja, de 48 a 78, “por uma elite política composta exclusivamente de autointitulados social-democratas de algum tipo”.
Se Stalin foi parteira de Israel, quem o embalou e o criou, com ele mantendo fortes laços de colaboração e amizade, foi o Tio Sam – cumprindo-se aquilo que, segundo Judt, havia sido antevisto pelo ditador soviético. Há momentos, no entanto, em que essa amizade se converte numa carga pesada para os E.U.A., tornando-se difícil e problemática para o país que, a despeito de sua hegemonia no mundo atual, também tem interesses na preservação de suas “credenciais democráticas” – mais ainda depois do 11 de setembro, data a partir da qual essas mesmas credenciais foram duramente atingidas.
Um desses difíceis momentos é representado, por exemplo, pela operação Margem Protetora que vem se desenrolando sem nenhuma expectativa de conclusão, e, especialmente, o dia 30 de julho, quando as forças israelenses bombardearam uma escola da ONU, usada como acampamento por famílias palestinas desabrigadas. O resultado foi a morte de pelo menos 15 pessoas.
Josh Earnest, secretário de imprensa de Barack Obama, denominou de “inaceitável” e “indefensável” o ataque perpetrado por Israel. Do lado israelense, persiste a afirmação de que a operação está longe de acabar. Binyamin Netanyahu reitera que a ofensiva só termina quando os túneis usados pelo Hamas forem neutralizados. Foram convocados mais 16 mil reservistas, o que dá o total de 86 mil soldados envolvidos no massacre. De todas as operações israelenses na Faixa de Gaza, no total de três desde 2008, esta é a mais longa e a mais “mortal”, segundo a Folha de S.Paulo. Os números oficiais publicados em 2 de agosto dão conta de 1.459 mortes entre os palestinos, a maioria civil (nesse número não estão contabilizadas as 129 mortes que o Hamas alega haver resultado do bombardeio israelense do dia 1º de agosto, às 10:30h da manhã, em Rafah e outros 50 alvos em Gaza). Do lado israelense, ainda segundo os números oficiais, são 63 pessoas mortas, 60 soldados e 3 civis. O cessar-fogo humanitário de 72 horas, iniciado na manhã do dia 1º de agosto, terminou nas primeiras horas. No campo da guerra das palavras, Hamas e Israel apresentam, cada qual, uma versão distinta sobre quem rompeu a trégua. Barack Obama já escolheu sua versão – ou seja, a verdade oficial já foi definida e, claro, está do lado do governo de Israel, porque, afinal, palavra de terrorista não merece sequer o benefício da dúvida. Por outro lado, como é sabido, o governo de Israel não mente jamais. Dessa vez, o presidente Obama vem a público para dizer que “será muito difícil a negociação de outro cessar-fogo se a comunidade internacional não tiver confiança de que o Hamas o cumprirá” – ou, traduzindo-se, o mundo precisa saber que o Hamas não merece trégua; a matança da população palestina deve ser colocada na conta dos danos colaterais, inevitáveis e, mais que isso, justificados. Na fala de Obama surge o mesmo argumento do editorial do Washington Post, “o dilema de Israel é ter de atacar os militantes palestinos sem atingir civis palestinos”.
A amizade com Israel produz um Tio Sam bipolar. Ontem, ele ralha e censura; hoje, conforta. Conforta a ponto de aprovar mais US$ 225 milhões ao sistema israelense de “defesa antimíssil”. É quase certo que Obama irá sancionar a medida do Congresso estadunidense que, à evidência, não se justifica pelo número de mortos de cada lado.
Antes do bombardeio à escola da ONU, hospitais e igrejas já haviam sido atingidos e o elevado número de mortos entre a população civil, incluindo jovens e crianças, é “lamentado”. Lamentam até mesmo os críticos do Likud ou da ocupação israelense na Cisjordânia, invocando o argumento de que não existe alternativa para a defesa da soberania de Israel e da integridade de sua população.
Na coluna de Julia Sweig, também na Folha de S.Paulo, 30/07/2014, a articulista cita o editorial aquele editorial do Washington Post como as “melhores palavras” que encontrou para “descrever o cinismo”:
“A perversidade da estratégia do Hamas parece passar despercebida de boa parte do mundo externo, que – aceitando o roteiro traçado pelos terroristas – culpa Israel pelas baixas civis que ele causa. Enquanto crianças morrem nos ataques à infraestrutura militar que os líderes do Hamas posicionam deliberadamente em casas e no meio delas, esses líderes permanecem em segurança em seus túneis”.
O mal lamentável é, contudo, inevitável. O mundo caiu na cilada do Hamas e não vê que o Estado de Israel é obrigado a tirar a vida de milhares de palestinos, desempenhando o único papel que lhe cabe no roteiro do filme de horror intitulado “Matem nossas crianças”.
O mesmo argumento ressurge todas as vezes que uma igreja, um hospital ou uma escola são atingidos. Culpa dos terroristas. Levado às últimas consequências, o argumento é para nos convencer de que os palestinos são, na verdade, vítimas do Hamas, ou vítimas de si mesmos, ou falsas vítimas. Nessa versão, a verdadeira vítima continua sendo Israel.
O mais irônico é que um argumento desse tipo já foi, no passado, construído contra os judeus, na mesma linha, ou seja, foram eles os culpados pelo extermínio nazista, ou, no mínimo, eram os cordeiros que marcharam em fila, resignados, para o abate. A “passividade submissa dos judeus” em direção à morte, em oposição ao “heroísmo israelense”, foi tema de artigos de Ben-Gurion e de textos produzidos pelo Davar, órgão do partido Mapai, como nos conta Hannah Arendt, por ocasião do julgamento de Eichmann em Jerusalém. Durante o julgamento, o promotor perguntava às testemunhas, judeus sobreviventes dos campos de concentração, “Por que você não protestou?”, “Havia 15 mil pessoas paradas lá, com centenas de guardas à frente – por que vocês não se revoltaram, não partiram para o ataque?”. Se os judeus chegavam “pontualmente nos pontos de transporte, andando sobre os próprios pés para os locais de execução, cavando os próprios túmulos, despindo-se e empilhando caprichosamente as próprias roupas, e deitando-se lado a lado para serem fuzilados”, responde Arendt, “parecia uma questão importante” para o efeito pedagógico do julgamento de Eichmann, “mas”, responde ela, “a triste verdade é que (a questão) era tomada erroneamente, pois nenhum grupo ou indivíduo não judeu (sujeito às mesmas condições) se comportou de outra forma” (Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 1999).
Por intermédio de outras vozes, agora provenientes da direita abertamente alinhada à política de Reuven Rivlin e Netanyahu, o argumento de que “a culpa é da vítima” é retrabalhado numa dimensão esquizofrênica, na qual as mortes dos civis na Faixa de Gaza obedeceriam ao método do “escudo humano”. Assim, os mortos teriam sido convocados a morrer pela Jihad e aceitaram a política do auto-aniquilamento. Nessa outra linha, Israel é novamente a verdadeira e eterna vítima do ódio, concentrado ou difuso, local ou universal, e não faz mais do que tornar possível o “suicídio em massa” da população civil na Faixa de Gaza.
Seja lá com que interesse, qualquer pessoa que sustente essa versão de “escudo humano” voluntário faz muito pouco de nossa capacidade de interação com os fatos, com a realidade.
Não, não estamos todos alucinando. Não é isso o que testemunham as imagens exibidas a cada dia pela TV e pela internet. Não estamos assistindo às cenas dos cordeiros que se deixam imolar, e a toda a sua família, para sujar de sangue as mãos limpas de Netanyahu e, com isso, servirem de escudo moral para o Hamas, conquistando o paraíso muçulmano, ou, quem sabe, facilitando a limpeza étnica, com a morte do último palestino na Faixa de Gaza.
Ainda que todos os 1.459 mortos, até agora, do lado da “falsa vítima”, estivessem, todos os 1.459, de pleno acordo com o método do auto-aniquilamento, ainda assim, o fato é que aos olhos do mundo Israel não ocupa mais o lugar da vítima.
A resposta da menina israelense referida no início, aquela frase impressionante – “o Hamas quer apenas nos matar, apenas porque somos judeus” – é anacrônica, não faz sentido nos dias de hoje, não convence o mundo de que a matança é justa e, mais, de que é a única resposta que o governo israelense pode oferecer. A jovem não quer falar de paz. Está empenhada em convencer sobre a necessidade do massacre.
Essas imagens paradoxais que a política do governo de Israel exibe para o mundo inteiro – nas palavras de Judt, “somos muito fortes/somos vulneráveis”, “controlamos nosso destino/somos vítimas” – realmente, não há como discordar do autor, não constituem nenhuma novidade, mas, ao contrário, estão imbricadas na identidade do país “praticamente desde o seu início”.
Tony Judt fala de uma “vitimização machista” como tom predominante na atual narrativa nacional de Israel que, segundo ele, é “prova de uma espécie de disfunção cognitiva coletiva que tomou conta da cultura política israelense”. Fala de uma “mania de perseguição longamente cultivada – ‘todo mundo quer pegar a gente’ – (que) não desperta mais comiseração”, mas, ao revés, “atrai comparações indesejáveis”, como, por exemplo, “Israel é a Sérvia com armas nucleares”.
Para ele, “(...) os palestinos substituíram os judeus como a minoria emblemática, perseguida: vulnerável, humilhada, despatriada. Em si esta distinção involuntária pouco faz pelo avanço da causa palestina (assim como pouco ajudou os judeus); mas redefiniu Israel para sempre. Tornou-se lugar-comum comparar Israel a um colonizador ocupante, na melhor das hipóteses, e, na pior, com a África do Sul e suas leis raciais e os bantustões”.
O historiador segue dizendo que “essas comparações são letais para a credibilidade moral de Israel”, pois “atingem aquilo que foi um dia seu mais forte argumento: a alegação de ser uma ilha vulnerável de democracia e decência num mar de autoritarismo e crueldade; um oásis de direitos e liberdade rodeado por um deserto de repressão. Mas democratas não isolam povos desamparados em bantustões, depois de conquistar suas terras; e homens livres não ignoram as leis internacionais e tomam as casas de outros homens”.
Outro historiador contemporâneo, Ilan Pappe, israelense, professor em Exeter, na Grã-Bretanha, um dos maiores críticos do sionismo militarista, fala de uma limpeza étnica levada a cabo pelos governantes de Israel contra os palestinos, desde 1948. Diz que a história oficial de Israel oculta a “catástrofe” – Nakba – que se abateu sobre os palestinos naquele ano, resultado da execução do Plano D, Dalet, do primeiro governo sionista. Denomina de “memoricídio” – como morte, apagamento, da memória coletiva de um povo – a narrativa oficial israelense construída paralelamente à expulsão e ao massacre de milhares de palestinos, jamais assumida como tal, mas como “abandono voluntário”, por parte dos palestinos, de seus lares (The Ethnic Cleansing of Palestine. Oxford: Oneworld Publications, 2007). Segue uma tradução livre de trecho elucidativo da denominada limpeza étnica:
“A organização (ONU) discutiu o conceito (de limpeza étnica) a sério, em 1993, o Conselho da ONU para os Direitos Humanos (CDH) liga o desejo de um regime de estado ou de impor regra étnica em uma área mista - como a confecção de Grande Sérvia - com o uso de atos de expulsão e outros meios violentos. O relatório do ACNUR publica atos definidos de limpeza étnica como incluindo a separação de homens das mulheres, a detenção de homens, explosão de casas e, posteriormente, repovoamento das casas restantes com outro grupo étnico. Em certos lugares no Kosovo, o relatório observou, as milícias muçulmanas tinha colocado resistência: onde esta resistência tinha sido efetiva, a expulsão implicava massacres. O Plano D, de 1948, de Israel, contém um repertório de métodos de limpeza que, um por um, se encaixa no modo como a ONU descreve sua definição de limpeza étnica, fornecendo o pano de fundo para os massacres que acompanharam a expulsão maciça”. É sabido que, de 47 a 49, foram cometidos mais de 30 massacres contra o povo palestino.
Sobre Ilan Pappe, da Wikipédia: "Antes de deixar Israel, ele havia sido veementemente condenado no Knesset, o parlamento de Israel. Um ministro da educação havia pedido a sua demissão da universidade, e sua foto havia sido publicada em um jornal, no centro de um alvo. Além disso, Pappe havia recebido várias ameaças de morte".
Esse não é, repita-se, o comportamento de um governo democrático. A liderança política de Israel, nos dias de hoje, encontra oposição não somente fora, mas também, embora minoritária, dentro do território israelense. É absolutamente equivocado supor que o governo de Israel represente a todos os judeus, dentro e fora de Israel – repito. A crítica ao sionismo não pode ser, tout court, definida pelo antissemitismo, como muitos querem fazer acreditar, sustentando que os “inimigos dos judeus” são aqueles que “culpam os israelenses pela violência na Faixa de Gaza, absolvendo o Hamas”. Trata-se de uma postura simplificadora e maniqueísta, idêntica àquela que orientou o governo de Bush Júnior no período posterior a 11 de setembro de 2001, cujo pano de fundo era a luta “do bem contra o mal”: “quem não concorda comigo é inimigo meu”. Judeus que se opõem ao sionismo não o fazem “apesar” de serem judeus, mas exatamente “porque” são judeus. É óbvio que há diferentes críticas – não falo de acusações temerárias e mal-intencionadas –assim como há distintos olhares ou explicações sobre a responsabilidade dos governos de Israel na manutenção do conflito. O que não é mais possível, contudo, é querer barrar a discussão pelo uso, à exaustão, da estratégia de deslegitimar o “adversário”, sob a acusação de “ódio aos judeus”, e simplesmente seguir adiante com as ações comprometedoras das “credenciais democráticas” de Israel e desastrosas para sua “credibilidade moral”.
Desconheço um único crítico da política sionista que não aponte a ocupação da Cisjordânia como um exemplo de comportamento equivocado e até mesmo “insustentável”. Hoje, condenar (ao menos) a desproporcionalidade dos ataques em Gaza é ou deveria ser, no meu modo de ver, esse sim, um “dever” para quem, judeu ou não, acredita numa política internacional pautada nos princípios humanitários e defende maneiras distintas de lidar com a questão Israel/Palestina. Nenhum governo de Israel, de 1991 até o momento, ofereceu – para ficar com o período de inauguração oficial das tratativas de paz na região – aos palestinos alguma coisa realmente consistente, no sentido de favorecer uma mudança drástica e radical, capaz de substituir o cenário dos muros e dos túneis.
Quem realmente defende a existência de Israel como Estado nacional, autônomo e independente, não apenas uma pátria para os judeus, mas também um território de coexistência pacífica entre pessoas distintas, entre etnias diferentes, como algo possível e desejável em qualquer lugar do mundo, tem razões de sobra para temer pelo futuro da região e também pelo futuro de Israel. Os muros de 8 metros que avançam além dos limites da chamada linha verde, correspondente ao traçado original a ONU, engolindo 10% da Cisjordânia e separando cidades palestinas inteiras, não vão garantir para sempre a defesa de Israel – defesa que também é a justificativa para os muros.
Pedem-nos – a essa “boa parte do mundo” – para “dar a Israel o benefício da dúvida na defesa imperfeita de sua soberania”, dizem-nos que estamos obedecendo ao roteiro traçado pelo Hamas, solicitam-nos a compreensão para o dilema israelense mencionado por Barack Obama. O que esperam de nós? Que aceitemos a resposta de que não há outra forma de Israel se defender? Que nos conformemos com a matança e o êxodo forçado de milhares de palestinos como a única solução justa?
Pedem-nos que aceitemos a catástrofe, sem a mais tímida demonstração de que podem avançar em algum ponto dos necessários acordos para a construção da paz na região. Até mesmo os planos traçados com a intervenção dos E.U.A. são recusados pelos governos de Israel.
Atitudes como essas reforçam, de um lado, uma antipatia que vem tomando maiores proporções contra o Estado de Israel – no limite, essa antipatia serve de combustível ao discurso do preconceito, e de outro lado, uma desconfiança sobre os verdadeiros propósitos do governo de Netanyahu – como, por exemplo, por que razão o governo de Israel tolerou que a construção de túneis pelo Hamas avançasse por território israelense adentro; por que permitiu que essa rede chegasse a tais proporções?
O jornalista estadunidense Michael Keep, também na Folha de S.Paulo, oferece outra explicação – bastante mais plausível, a meu ver – para a deflagração da Operação Margem de Segurança:
“O que desencadeou o conflito mais recente entre Israel e Hamas não foi o assassinato de três adolescentes israelenses na Cisjordânia, em junho, ou o assassinato subsequente de um adolescente palestino por israelenses. O conflito foi causado, em grande parte, pela tentativa de Israel de enfraquecer um acordo de reconciliação feito em abril entre o Hamas, que governa Gaza, e o Fatah, que administra parte da Cisjordânia, e que resultou, em junho, em um governo de união. Assim que foi anunciado o pacto, Israel suspendeu as conversações de paz”.
Vale a pena transcrever as palavras do jornalista de 64 anos, radicado no Brasil, e autor do livro “Tropeço nos Trópicos”:
“O líder do Fatah e presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, prometeu que o governo de união reconheceria Israel (o que o Hamas não faz) e manteria o compromisso de buscar a paz com base na solução de dois Estados (Israel e Palestina). Mas isso não foi levado em conta pelo governo israelense, que vê o Hamas como grupo terrorista que busca a destruição do Estado judaico. O pacto ainda ameaça setores linha-dura de Israel que se opõem à solução de dois Estados – e sabem que uma liderança palestina unida seria requisito. Israel, além disso, continuou o bloqueio a Gaza em vigor há oito anos, que restringe a entrada de bens essenciais. E também suspende os salários dos 43 mil funcionários públicos de Gaza. Isso atingiu o bolso do Hamas, que enfrenta problemas financeiros desde 2013, quando deixou de apoiar o ditador sírio, Bashar al-Assad – o que levou o Irã, aliado dele, a deixar de financiar o grupo”. O governo egípcio já havia cortado a ajuda financeira ao Hamas, depois da deposição de Mohamed Mursi.
Enfim, e se não aceitamos o caráter justo e inevitável da operação Margem Protetora? E se o clima externo de desaprovação ao governo de Israel alcançar proporções realmente importantes? E se o Tio Sam se cansar de vez e reorientar seu interesse para outros objetivos? E se, como disse o escritor israelense Etgar Keret, em artigo do jornal El País, forem eliminados todos e cada um dos combatentes do Hamas, “alguém crê sinceramente que a aspiração dos palestinos à independência nacional vai desaparecer com eles?” – (coluna de Clóvis Rossi, na Folha de S.Paulo do dia 31/07/2014).
O apoio dos israelenses à operação em Gaza é inquestionável, ao menos de acordo com as pesquisas sucessivas do Instituto Democracia de Israel, realizadas em 14, 16-17 e 23 de julho (96%, 92% e 97%) – detalhe, os israelenses árabes não foram entrevistados. Parece certo que o governo de Netanyahu, com base no princípio democrático da maioria quantitativa, tem apoio interno para apostar na intensificação dos ataques.

Mas esse é apenas um episódio e não o epílogo de uma mesma série que já caminha para os 70 anos de existência. É preciso que os cidadãos israelenses comecem a refletir seriamente sobre uma outra lição da história, a de que os muros não são eternos. 

Um comentário:

  1. Os números divulgados hoje das mortes na operação Margem Protetora é de 1.800 palestinos e 67 israelenses, sendo 4 civis.

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