Muros
e túneis, uma arquitetura da violência
Beatriz Vargas
Ramos
Um
trecho específico me chamou a atenção em um programa de TV que foi ao ar pela
Band, em 21/07/2014. O repórter estava no centro de Jerusalém. Encontrou uma
manifestação de apoio ao bombardeio promovido pelo governo de Israel na Faixa
de Gaza e escolheu uma jovem, aparentemente ainda na adolescência, para
responder à seguinte pergunta:
“Por
que vocês estão aqui nesta noite?”
A
jovem estava na companhia de outros tantos jovens, alguns adultos e até
crianças. Quase todos portavam bandeiras de Israel. Ela deu a seguinte
resposta:
“É
nosso dever. É bom para o mundo todo. O Hamas quer nos matar, só porque somos
judeus e isso é um erro”.
Seguiu-se
outra pergunta sobre como chegar à paz em meio a tanta violência e a jovem
respondeu que não iria falar de paz, insistindo na mesma afirmativa anterior: “O
Hamas quer apenas nos matar”. Uma simples frase, uma frase
impressionante.
Ninguém
que disponha de um mínimo de informação sobre os conflitos entre Israel e
Palestina vai levar a sério a “explicação” da jovem israelense entrevistada. A
frase – “just because we’re jews” – não é apenas a simplificação de um problema complexo de dimensões catastróficas,
sobretudo para os palestinos, é também, e paradoxalmente, um exagero, o da vitimização. Exibe as indisfarçáveis notas de uma auto-defesa
comiserativa e, ao mesmo tempo, oculta
outras explicações possíveis e, assim, funciona como um esforço de justificação
para os ataques brutais e para o tratamento desumano dispensado a milhares de palestinos,
ao longo de um processo que já se aproxima da marca dos 70 anos.
O
que diz a jovem israelense manifestante é, no entanto, o que uma grande
quantidade de pessoas, sobretudo dentro de Israel, repete, ressoa, repercute,
reproduz à exaustão, até o ponto de acreditar na versão de que a violência do
Hamas contra Israel possa ser reduzida à lógica do “ódio aos judeus”. Não deixa
de ser um recurso de auto-imunização contra a violência praticada contra outros
seres humanos.
Penso
que nos dias atuais é cada vez menor o número de pessoas às quais pareça convincente
o argumento de que a violência do Hamas contra Israel ou as próprias críticas
ao governo israelense, mesmo as mais duras, sejam diferentes expressões de uma
mesma coisa, ou seja, de antissemitismo.
Não
que o antissemitismo e, de resto, qualquer tipo de preconceito étnico tenham
sido banidos da face da terra. Sabemos que não. Pensar que a derrota dos
fascismos e o repúdio à experiência da Shoá, para não dizer “holocausto” – algo
que nunca mais deverá ser repetido – sejam a garantia do fim dos preconceitos é
crença que supera até mesmo os limites da pura ingenuidade. É inegável,
entretanto, que hoje em dia – para dizer muito pouco – existem menos
antissemitas no mundo do que havia até a Segunda Guerra Mundial. Além disso, um
discurso antissemita ou um discurso preconceituoso em geral – para dizer um
pouco mais – não é o tipo de fala que se faz atualmente em praça pública, sem
atrair reações fundadas na defesa dos direitos humanos, parâmetros de respeito
à dignidade humana que, sem dúvida, se tornaram mais fortes depois que a
história do extermínio nazista foi narrada em primeira pessoa para o mundo
inteiro. Basta lembrar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem das
Nações Unidas data de dezembro de 1948. No mesmo ano, em maio, foi oficialmente
instituída a criação do Estado de Israel. Um discurso de preconceito não tem
legitimidade política.
Israel,
justamente por ser um Estado pequeno, ou para usar da expressão com que o porta-voz
do governo de Israel, Yigal Palmor, se referiu ao Brasil, um Estado “anão”, já
foi visto no passado como Davi diante de Golias. Essa imagem bíblica bem
representou a vitória de Israel contra a coligação árabe formada pelo Egito,
Jordânia e Síria, seguida da ocupação militar israelense da Cisjordânia e da
Faixa da Gaza, das Colinas de Golã e da Península do Sinai.
Naquele
tempo, ano de 1967 – eu tinha lá meus 6 anos de idade – a vitória israelense
arrasadora, particularmente humilhante para Gamal Abdel Nasser, atraiu a
atenção do mundo e rendeu ao pequeno país respeito e admiração da opinião
pública internacional. Não é que eu traga lembranças do noticiário de 1967, mas
posso dizer claramente que cresci ouvindo elogios à bravura de Israel e relatos
comprobatórios da “superioridade intelectual” de seu povo e sobre a justiça da
criação do seu Estado livre e independente.
Em
1967, Tony Judt, historiador inglês – e judeu – tinha 19 anos. Ele relembra, em
2006, a opinião dos estudantes na Universidade de Cambridge, na primavera de
67, “majoritariamente pró-Israel”. Afirma Judt, no ensaio intitulado O
país que não queria crescer, publicado no Brasil em 2010, pela editora Objetiva
(Reflexões sobre um Século Esquecido:
1901 – 2000, tradução de Celso Nogueira): “... todos prestavam pouca
atenção à condição dos palestinos, ou à aliança anterior de Israel com a França
e a Grã-Bretanha, que levou à desastrosa aventura em Suez, em 1956”. Acrescenta
que “na política e nos círculos que elaboravam as políticas, só especialistas
em assuntos árabes conservadores e antiquados criticavam o Estado de Israel;
até os neofascitas chegavam a aprovar o sionismo, com base no antissemistismo
tradicional”.
Ainda
no meu tempo de ginásio, fiz um trabalho escolar sobre o Estado de Israel, sua
criação, sua capital, bandeira, economia e, enfim, o grande destaque, o kibutz. Meu professor de geografia,
disciplina para a qual o trabalho era requerido, mostrava-se especialmente
entusiasmado com a experiência israelense dos kibutzim. Ele dizia que eu possuía semelhanças físicas com Anne Frank,
o que me levou a pesquisar a história e buscar imagens da menina judia. À minha
disposição – não havia computador, internet
ou Google –, enciclopédias, livros
escolares, textos de história e revistas, como O Cruzeiro, e as de circulação em língua portuguesa, como a Revista Seleções, o Reader’s Digest, que meu pai assinou por algum tempo. Tudo o que me
chegou às mãos, e que representava, na verdade, as fontes de informação de
maior circulação para a média dos brasileiros ou para a grande maioria dos
leitores, eram textos elogiosos, relatos simpáticos e favoráveis a Israel. Nenhuma
crítica a Bem-Gurion, Levi Eshkol, a Moshe Dayan ou a outros líderes
israelenses. Nenhuma análise mais aprofundada ou vertical da política sionista.
Nenhuma oposição consistente ao governo israelense.
Hoje
esse cenário mudou. É comum a crítica ao sionismo e à política do governo de
Israel. O Estado de Israel não se harmoniza mais com a imagem do Davi contra o
Golias. Ao revés, está mais para um gigante, arrogante e opressor, ao menos em
termos militares. Sua primeira usina nuclear foi construída ainda nos anos 60 e
atualmente não se sabe ao certo o número de ogivas nucleares que possui e não
se tem a exata definição do tipo e da quantidade de suas armas atômicas. Há
especulações trabalhando com hipóteses diversas, entre elas a de que o arsenal
nuclear israelense está no mesmo nível dos franceses e dos britânicos. Essas
não são informações do tipo que se obtém com facilidade, não são alardeadas
pelos Estados em geral – exceto, é claro, quando podem gerar algum tipo de
proveito político e, nesse caso, carregam também a suspeita de mero blefe.
Acredito
que para a maior parte das pessoas da minha geração, é facilmente perceptível,
da década de 70 até o presente, o arrefecimento daquele clima geral de
aprovação aos sucessivos governos de Israel. Durante meus tempos de militância
no movimento estudantil universitário em Belo Horizonte, nos anos 80, a
esquerda internacional já não possuía mais nenhuma ligação política com o Estado
de Israel. Uma sonhada parceria entre a esquerda e Israel é algo tão
implausível no presente que, talvez, falar disso aos jovens que hoje têm a idade
dos meus filhos produza o mesmo efeito de uma narrativa de ficção. No movimento
estudantil da minha época, a questão palestina não era tema central das
discussões políticas dominadas, ao que me lembro, pelo sindicato polonês
Solidariedade, pelas comemorações da “bazucada” que exterminou Anastácio
Somoza, pelas manifestações contra o Ministro Ludwig, o general da pasta da
Educação e, na sequência, pela Central Única dos Trabalhadores no Brasil, a
política sindical no ABC paulista e a filiação – ou não – ao recém-criado
Partido dos Trabalhadores.
Novamente
Tony Judt, em texto produzido a partir de conversas com estadunidense Timothy
Snyder, professor de história na Universidade de Yale, intitulado O
King’s e os kibutzim: sionista de Cambridge (Pensando o Século XX. Trad. Otacílio Nunes. Rio: Objetiva, 2014),
lembra que “Stalin foi a parteira de Israel”.
Segundo
Judt, “a visão da esquerda, tanto os comunistas quanto os não comunistas, era
que, por razões ideológicas e genealógicas, um Estado que abrangesse judeus do
leste-europeu de origens socialistas certamente devia ser um parceiro
solidário. Mas Stalin logo percebeu, mais rápido do que a maioria, na verdade,
que a trajetória natural de Israel seria fazer uma aliança protetora no
Ocidente, em particular levando em conta a crescente importância do Oriente
Médio e do Mediterrâneo para a segurança e os interesses econômicos
ocidentais”. Para o historiador inglês, “o restante da esquerda demorou a
entender isso: ao longo da década de 1950 e de boa parte da de 1960, Israel
ainda era associado com a esquerda política e intelectual dominante e admirado
por ela”. Segue afirmando que, “na verdade, o país foi governado durante suas
três primeiras décadas”, ou seja, de 48 a 78, “por uma elite política composta
exclusivamente de autointitulados social-democratas de algum tipo”.
Se
Stalin foi parteira de Israel, quem o embalou e o criou, com ele mantendo
fortes laços de colaboração e amizade, foi o Tio Sam – cumprindo-se aquilo que,
segundo Judt, havia sido antevisto pelo ditador soviético. Há momentos, no
entanto, em que essa amizade se converte numa carga pesada para os E.U.A., tornando-se
difícil e problemática para o país que, a despeito de sua hegemonia no mundo
atual, também tem interesses na preservação de suas “credenciais democráticas”
– mais ainda depois do 11 de setembro, data a partir da qual essas mesmas
credenciais foram duramente atingidas.
Um
desses difíceis momentos é representado, por exemplo, pela operação Margem
Protetora que vem se desenrolando sem nenhuma expectativa de conclusão,
e, especialmente, o dia 30 de julho, quando as forças israelenses bombardearam
uma escola da ONU, usada como acampamento por famílias palestinas desabrigadas.
O resultado foi a morte de pelo menos 15 pessoas.
Josh
Earnest, secretário de imprensa de Barack Obama, denominou de “inaceitável” e “indefensável”
o ataque perpetrado por Israel. Do lado israelense, persiste a afirmação de que
a operação está longe de acabar. Binyamin Netanyahu reitera que a ofensiva só
termina quando os túneis usados pelo Hamas forem neutralizados. Foram
convocados mais 16 mil reservistas, o que dá o total de 86 mil soldados
envolvidos no massacre. De todas as operações israelenses na Faixa de Gaza, no
total de três desde 2008, esta é a mais longa e a mais “mortal”, segundo a
Folha de S.Paulo. Os números oficiais publicados em 2 de agosto dão conta de 1.459
mortes entre os palestinos, a maioria civil (nesse número não estão
contabilizadas as 129 mortes que o Hamas alega haver resultado do bombardeio
israelense do dia 1º de agosto, às 10:30h da manhã, em Rafah e outros 50 alvos
em Gaza). Do lado israelense, ainda segundo os números oficiais, são 63 pessoas
mortas, 60 soldados e 3 civis. O cessar-fogo humanitário de 72 horas, iniciado
na manhã do dia 1º de agosto, terminou nas primeiras horas. No campo da guerra
das palavras, Hamas e Israel apresentam, cada qual, uma versão distinta sobre
quem rompeu a trégua. Barack Obama já escolheu sua versão – ou seja, a verdade oficial
já foi definida e, claro, está do lado do governo de Israel, porque, afinal,
palavra de terrorista não merece sequer o benefício da dúvida. Por outro lado,
como é sabido, o governo de Israel não mente jamais. Dessa vez, o presidente
Obama vem a público para dizer que “será
muito difícil a negociação de outro cessar-fogo se a comunidade internacional
não tiver confiança de que o Hamas o cumprirá” – ou, traduzindo-se, o mundo
precisa saber que o Hamas não merece trégua; a matança da população palestina
deve ser colocada na conta dos danos colaterais, inevitáveis e, mais que isso,
justificados. Na fala de Obama surge o mesmo argumento do editorial do Washington Post, “o dilema de Israel é
ter de atacar os militantes palestinos sem atingir civis palestinos”.
A
amizade com Israel produz um Tio Sam bipolar. Ontem, ele ralha e censura; hoje,
conforta. Conforta a ponto de aprovar mais US$ 225 milhões ao sistema
israelense de “defesa antimíssil”. É quase certo que Obama irá sancionar a
medida do Congresso estadunidense que, à evidência, não se justifica pelo
número de mortos de cada lado.
Antes
do bombardeio à escola da ONU, hospitais e igrejas já haviam sido atingidos e o
elevado número de mortos entre a população civil, incluindo jovens e crianças,
é “lamentado”. Lamentam até mesmo os críticos do Likud ou da ocupação
israelense na Cisjordânia, invocando o argumento de que não existe alternativa
para a defesa da soberania de Israel e da integridade de sua população.
Na
coluna de Julia Sweig, também na Folha de S.Paulo, 30/07/2014, a articulista
cita o editorial aquele editorial do Washington
Post como as “melhores palavras” que encontrou para “descrever o cinismo”:
“A
perversidade da estratégia do Hamas parece passar despercebida de boa parte do
mundo externo, que – aceitando o roteiro traçado pelos terroristas – culpa
Israel pelas baixas civis que ele causa. Enquanto crianças morrem nos ataques à
infraestrutura militar que os líderes do Hamas posicionam deliberadamente em
casas e no meio delas, esses líderes permanecem em segurança em seus túneis”.
O
mal lamentável é, contudo, inevitável. O mundo caiu na cilada do Hamas e não vê
que o Estado de Israel é obrigado a tirar a vida de milhares de palestinos, desempenhando
o único papel que lhe cabe no roteiro do filme de horror intitulado “Matem
nossas crianças”.
O
mesmo argumento ressurge todas as vezes que uma igreja, um hospital ou uma
escola são atingidos. Culpa dos terroristas. Levado às últimas consequências, o
argumento é para nos convencer de que os palestinos são, na verdade, vítimas do
Hamas, ou vítimas de si mesmos, ou falsas vítimas. Nessa versão, a verdadeira
vítima continua sendo Israel.
O
mais irônico é que um argumento desse tipo já foi, no passado, construído
contra os judeus, na mesma linha, ou seja, foram eles os culpados pelo
extermínio nazista, ou, no mínimo, eram os cordeiros que marcharam em fila,
resignados, para o abate. A “passividade submissa dos judeus” em direção à
morte, em oposição ao “heroísmo israelense”, foi tema de artigos de Ben-Gurion
e de textos produzidos pelo Davar,
órgão do partido Mapai, como nos
conta Hannah Arendt, por ocasião do julgamento de Eichmann em Jerusalém.
Durante o julgamento, o promotor perguntava às testemunhas, judeus
sobreviventes dos campos de concentração, “Por que você não protestou?”, “Havia
15 mil pessoas paradas lá, com centenas de guardas à frente – por que vocês não
se revoltaram, não partiram para o ataque?”. Se os judeus chegavam
“pontualmente nos pontos de transporte, andando sobre os próprios pés para os locais
de execução, cavando os próprios túmulos, despindo-se e empilhando
caprichosamente as próprias roupas, e deitando-se lado a lado para serem
fuzilados”, responde Arendt, “parecia uma questão importante” para o efeito
pedagógico do julgamento de Eichmann, “mas”, responde ela, “a triste verdade é
que (a questão) era tomada erroneamente, pois nenhum grupo ou indivíduo não
judeu (sujeito às mesmas condições) se comportou de outra forma” (Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a
banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 1999).
Por
intermédio de outras vozes, agora provenientes da direita abertamente alinhada
à política de Reuven Rivlin e Netanyahu, o argumento de que “a culpa é da
vítima” é retrabalhado numa dimensão esquizofrênica, na qual as mortes dos
civis na Faixa de Gaza obedeceriam ao método do “escudo humano”. Assim, os
mortos teriam sido convocados a morrer pela Jihad
e aceitaram a política do auto-aniquilamento. Nessa outra linha, Israel é
novamente a verdadeira e eterna vítima do ódio, concentrado ou difuso, local ou
universal, e não faz mais do que tornar possível o “suicídio em massa” da
população civil na Faixa de Gaza.
Seja
lá com que interesse, qualquer pessoa que sustente essa versão de “escudo
humano” voluntário faz muito pouco de nossa capacidade de interação com os
fatos, com a realidade.
Não,
não estamos todos alucinando. Não é isso o que testemunham as imagens exibidas
a cada dia pela TV e pela internet. Não
estamos assistindo às cenas dos cordeiros que se deixam imolar, e a toda a sua
família, para sujar de sangue as mãos limpas de Netanyahu e, com isso, servirem
de escudo moral para o Hamas, conquistando o paraíso muçulmano, ou, quem sabe, facilitando
a limpeza étnica, com a morte do último palestino na Faixa de Gaza.
Ainda
que todos os 1.459 mortos, até agora, do lado da “falsa vítima”, estivessem,
todos os 1.459, de pleno acordo com o método do auto-aniquilamento, ainda
assim, o fato é que aos olhos do mundo Israel não ocupa mais o lugar da vítima.
A
resposta da menina israelense referida no início, aquela frase impressionante –
“o
Hamas quer apenas nos matar, apenas porque somos judeus” – é
anacrônica, não faz sentido nos dias de hoje, não convence o mundo de que a
matança é justa e, mais, de que é a única resposta que o governo israelense
pode oferecer. A jovem não quer falar de paz. Está empenhada em convencer sobre
a necessidade do massacre.
Essas
imagens paradoxais que a política do governo de Israel exibe para o mundo
inteiro – nas palavras de Judt, “somos muito fortes/somos vulneráveis”,
“controlamos
nosso destino/somos vítimas” – realmente, não há como discordar do autor,
não constituem nenhuma novidade, mas, ao contrário, estão imbricadas na
identidade do país “praticamente desde o seu início”.
Tony
Judt fala de uma “vitimização machista” como tom predominante na atual
narrativa nacional de Israel que, segundo ele, é “prova de uma espécie de
disfunção cognitiva coletiva que tomou conta da cultura política israelense”.
Fala de uma “mania de perseguição longamente cultivada – ‘todo mundo quer pegar
a gente’ – (que) não desperta mais comiseração”, mas, ao revés, “atrai
comparações indesejáveis”, como, por exemplo, “Israel é a Sérvia com armas
nucleares”.
Para
ele, “(...) os palestinos substituíram os judeus como a minoria emblemática,
perseguida: vulnerável, humilhada, despatriada. Em si esta distinção
involuntária pouco faz pelo avanço da causa palestina (assim como pouco ajudou
os judeus); mas redefiniu Israel para sempre. Tornou-se lugar-comum comparar
Israel a um colonizador ocupante, na melhor das hipóteses, e, na pior, com a África
do Sul e suas leis raciais e os bantustões”.
O
historiador segue dizendo que “essas comparações são letais para a
credibilidade moral de Israel”, pois “atingem aquilo que foi um dia seu mais
forte argumento: a alegação de ser uma ilha vulnerável de democracia e decência
num mar de autoritarismo e crueldade; um oásis de direitos e liberdade rodeado
por um deserto de repressão. Mas democratas não isolam povos desamparados em
bantustões, depois de conquistar suas terras; e homens livres não ignoram as leis
internacionais e tomam as casas de outros homens”.
Outro
historiador contemporâneo, Ilan Pappe, israelense, professor em Exeter, na
Grã-Bretanha, um dos maiores críticos do sionismo militarista, fala de uma
limpeza étnica levada a cabo pelos governantes de Israel contra os palestinos,
desde 1948. Diz que a história oficial de Israel oculta a “catástrofe” – Nakba
– que se abateu sobre os palestinos naquele ano, resultado da execução do Plano
D, Dalet, do primeiro governo
sionista. Denomina de “memoricídio” – como morte, apagamento, da memória
coletiva de um povo – a narrativa oficial israelense construída paralelamente à
expulsão e ao massacre de milhares de palestinos, jamais assumida como tal, mas
como “abandono voluntário”, por parte dos palestinos, de seus lares (The Ethnic Cleansing of Palestine. Oxford: Oneworld Publications, 2007). Segue uma
tradução livre de trecho elucidativo da denominada limpeza étnica:
“A
organização (ONU) discutiu o conceito (de limpeza étnica) a sério, em 1993, o
Conselho da ONU para os Direitos Humanos (CDH) liga o desejo de um regime de
estado ou de impor regra étnica em uma área mista - como a confecção de Grande
Sérvia - com o uso de atos de expulsão e outros meios violentos. O relatório do
ACNUR publica atos definidos de limpeza étnica como incluindo a separação de
homens das mulheres, a detenção de homens, explosão de casas e, posteriormente,
repovoamento das casas restantes com outro grupo étnico. Em certos lugares no
Kosovo, o relatório observou, as milícias muçulmanas tinha colocado
resistência: onde esta resistência tinha sido efetiva, a expulsão implicava
massacres. O Plano D, de 1948, de Israel, contém um repertório de métodos de
limpeza que, um por um, se encaixa no modo como a ONU descreve sua definição de
limpeza étnica, fornecendo o pano de fundo para os massacres que acompanharam a
expulsão maciça”. É sabido que, de 47 a 49, foram cometidos mais de 30
massacres contra o povo palestino.
Sobre
Ilan Pappe, da Wikipédia: "Antes de deixar
Israel, ele havia sido veementemente condenado no Knesset, o parlamento de Israel. Um ministro da educação havia
pedido a sua demissão da universidade, e sua foto havia sido publicada em um
jornal, no centro de um alvo. Além disso, Pappe havia recebido várias ameaças
de morte".
Esse
não é, repita-se, o comportamento de um governo democrático. A liderança
política de Israel, nos dias de hoje, encontra oposição não somente fora, mas
também, embora minoritária, dentro do território israelense. É absolutamente equivocado
supor que o governo de Israel represente a todos os judeus, dentro e fora de
Israel – repito. A crítica ao sionismo não pode ser, tout court, definida pelo antissemitismo, como muitos querem fazer acreditar,
sustentando que os “inimigos dos judeus” são aqueles que “culpam os israelenses
pela violência na Faixa de Gaza, absolvendo o Hamas”. Trata-se de uma postura
simplificadora e maniqueísta, idêntica àquela que orientou o governo de Bush
Júnior no período posterior a 11 de setembro de 2001, cujo pano de fundo era a luta
“do bem contra o mal”: “quem não concorda comigo é inimigo meu”. Judeus que se
opõem ao sionismo não o fazem “apesar” de serem judeus, mas exatamente “porque”
são judeus. É óbvio que há diferentes críticas – não falo de acusações
temerárias e mal-intencionadas –assim como há distintos olhares ou explicações
sobre a responsabilidade dos governos de Israel na manutenção do conflito. O
que não é mais possível, contudo, é querer barrar a discussão pelo uso, à
exaustão, da estratégia de deslegitimar o “adversário”, sob a acusação de “ódio
aos judeus”, e simplesmente seguir adiante com as ações comprometedoras das “credenciais
democráticas” de Israel e desastrosas para sua “credibilidade moral”.
Desconheço
um único crítico da política sionista que não aponte a ocupação da Cisjordânia
como um exemplo de comportamento equivocado e até mesmo “insustentável”. Hoje,
condenar (ao menos) a desproporcionalidade dos ataques em Gaza é ou deveria
ser, no meu modo de ver, esse sim, um “dever” para quem, judeu ou não, acredita
numa política internacional pautada nos princípios humanitários e defende maneiras
distintas de lidar com a questão Israel/Palestina. Nenhum governo de Israel, de
1991 até o momento, ofereceu – para ficar com o período de inauguração oficial
das tratativas de paz na região – aos palestinos alguma coisa realmente
consistente, no sentido de favorecer uma mudança drástica e radical, capaz de
substituir o cenário dos muros e dos túneis.
Quem
realmente defende a existência de Israel como Estado nacional, autônomo e
independente, não apenas uma pátria para os judeus, mas também um território de
coexistência pacífica entre pessoas distintas, entre etnias diferentes, como
algo possível e desejável em qualquer lugar do mundo, tem razões de sobra para
temer pelo futuro da região e também pelo futuro de Israel. Os muros de 8
metros que avançam além dos limites da chamada linha verde, correspondente ao
traçado original a ONU, engolindo 10% da Cisjordânia e separando cidades
palestinas inteiras, não vão garantir para sempre a defesa de Israel – defesa
que também é a justificativa para os muros.
Pedem-nos
– a essa “boa parte do mundo” – para “dar a Israel o benefício da dúvida na
defesa imperfeita de sua soberania”, dizem-nos que estamos obedecendo ao roteiro
traçado pelo Hamas, solicitam-nos a compreensão para o dilema israelense
mencionado por Barack Obama. O que esperam de nós? Que aceitemos a resposta de
que não há outra forma de Israel se defender? Que nos conformemos com a matança
e o êxodo forçado de milhares de palestinos como a única solução justa?
Pedem-nos
que aceitemos a catástrofe, sem a mais tímida demonstração de que podem avançar
em algum ponto dos necessários acordos para a construção da paz na região. Até
mesmo os planos traçados com a intervenção dos E.U.A. são recusados pelos
governos de Israel.
Atitudes
como essas reforçam, de um lado, uma antipatia que vem tomando maiores
proporções contra o Estado de Israel – no limite, essa antipatia serve de
combustível ao discurso do preconceito, e de outro lado, uma desconfiança sobre
os verdadeiros propósitos do governo de Netanyahu – como, por exemplo, por que
razão o governo de Israel tolerou que a construção de túneis pelo Hamas
avançasse por território israelense adentro; por que permitiu que essa rede
chegasse a tais proporções?
O
jornalista estadunidense Michael Keep, também na Folha de S.Paulo, oferece
outra explicação – bastante mais plausível, a meu ver – para a deflagração da
Operação Margem de Segurança:
“O
que desencadeou o conflito mais recente entre Israel e Hamas não foi o
assassinato de três adolescentes israelenses na Cisjordânia, em junho, ou o
assassinato subsequente de um adolescente palestino por israelenses. O conflito
foi causado, em grande parte, pela tentativa de Israel de enfraquecer um acordo
de reconciliação feito em abril entre o Hamas, que governa Gaza, e o Fatah, que
administra parte da Cisjordânia, e que resultou, em junho, em um governo de
união. Assim que foi anunciado o pacto, Israel suspendeu as conversações de paz”.
Vale
a pena transcrever as palavras do jornalista de 64 anos, radicado no Brasil, e
autor do livro “Tropeço nos Trópicos”:
“O
líder do Fatah e presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, prometeu
que o governo de união reconheceria Israel (o que o Hamas não faz) e manteria o
compromisso de buscar a paz com base na solução de dois Estados (Israel e
Palestina). Mas isso não foi levado em conta pelo governo israelense, que vê o
Hamas como grupo terrorista que busca a destruição do Estado judaico. O pacto
ainda ameaça setores linha-dura de Israel que se opõem à solução de dois
Estados – e sabem que uma liderança palestina unida seria requisito. Israel,
além disso, continuou o bloqueio a Gaza em vigor há oito anos, que restringe a
entrada de bens essenciais. E também suspende os salários dos 43 mil
funcionários públicos de Gaza. Isso atingiu o bolso do Hamas, que enfrenta
problemas financeiros desde 2013, quando deixou de apoiar o ditador sírio,
Bashar al-Assad – o que levou o Irã, aliado dele, a deixar de financiar o
grupo”. O governo egípcio já havia cortado a ajuda financeira ao Hamas, depois
da deposição de Mohamed Mursi.
Enfim,
e se não aceitamos o caráter justo e inevitável da operação Margem
Protetora? E se o clima externo de desaprovação ao governo de Israel
alcançar proporções realmente importantes? E se o Tio Sam se cansar de vez e
reorientar seu interesse para outros objetivos? E se, como disse o escritor
israelense Etgar Keret, em artigo do jornal El País, forem eliminados
todos e cada um dos combatentes do Hamas, “alguém crê sinceramente que a
aspiração dos palestinos à independência nacional vai desaparecer com eles?” –
(coluna de Clóvis Rossi, na Folha de S.Paulo do dia 31/07/2014).
O
apoio dos israelenses à operação em Gaza é inquestionável, ao menos de acordo
com as pesquisas sucessivas do Instituto Democracia de Israel, realizadas em
14, 16-17 e 23 de julho (96%, 92% e 97%) – detalhe, os israelenses árabes não
foram entrevistados. Parece certo que o governo de Netanyahu, com base no
princípio democrático da maioria quantitativa, tem apoio interno para apostar
na intensificação dos ataques.
Mas
esse é apenas um episódio e não o epílogo de uma mesma série que já caminha
para os 70 anos de existência. É preciso que os cidadãos israelenses comecem a
refletir seriamente sobre uma outra lição da história, a de que os muros não
são eternos.
Os números divulgados hoje das mortes na operação Margem Protetora é de 1.800 palestinos e 67 israelenses, sendo 4 civis.
ResponderExcluir