O garoto que fumava maconha
Beatriz Vargas Ramos, 21/02/2012
“Ele grita toquem mais doce a morte a morte
é uma mestra da Alemanha”
Paul Celan
Jovem, cheio
de planos e pleno de certezas nos seus 20 anos de idade – nada demais, as
certezas são possíveis aos 20 anos de idade. Alternativo, veganista, pianista,
não usava roupas de grife e nem namorava patricinhas. Empregos esporádicos,
ajuda financeira da família, mesada do pai. Morava sozinho e, de vez em quando,
hospedava algum amigo, ou amiga, por tempo indeterminado, que o ajudava a
dividir as despesas do aluguel da pequena casa de bairro. Primeiro semestre do
curso de artes cênicas, leitor de Nietzche e Maffesoli, adorava a poesia de
Paul Celan. Também escrevia seus poemas, suas músicas. Outsider, usava
maconha. Um dia foi preso e acusado de traficar a droga. Tinha ido comprar.
Trazia consigo três cigarros, mas a polícia, antenada, suspeitou que podia ter
mais – cabelão, tatuagens, brinco na orelha, jeito descuidado de se vestir. Foi
levado até sua casa, onde a polícia entrou sem ser convidada e encontrou mais
quantidade da mesma droga – que foi considerada superior ao “indicado” para o
consumo pessoal. Tentou argumentar, negou que vendia maconha. Não resistiu às
algemas, mas assim mesmo tomou um soco no maxilar, “para não bancar o esperto”.
Foi conduzido à delegacia, autuado em flagrante. Os testemunhos dos dois
policiais, a quantidade de maconha apreendida e o local da prisão, “conhecido
como boca-de-fumo” – diria o delegado e repetiria o juiz – foram decisivos para
a classificação como tráfico. Da delegacia, foi parar em um estabelecimento
para presos provisórios. Ali passou seu aniversário, numa cela com mais dezoito
jovens “traficantes” e um, não tão jovem, ladrão de automóvel. Os companheiros
de cela, menos alternativos, mais sofridos, mais pobres, menos educados,
estranharam a presença de um universitário. “Filhinho de papai”, com certeza.
Ali todo mundo sentia falta de tudo. Cigarro valia ouro e silêncio podia ser
interpretado como hostilidade ou sinal de superioridade em relação aos demais.
Abrir a boca também era difícil. Ninguém se entendia direito e ele não conhecia
a gíria dos veteranos. Era melhor não deixar escapar tudo o que vinha à cabeça
– incrível o fato de nunca haver se dado conta do que é ser livre. Pressão de
todo lado. Muitas vozes o tempo todo. Vozerio ininterrupto, ensurdecedor. Falas
sem pausa, sem paz, sem trégua, encontros e desencontros verbais, ansiedade,
risadas nervosas. A sensação era de que algo estava, sempre, prestes a
explodir. “Preso é muito difícil, nunca está satisfeito. Com a família do preso
a gente dá conta de lidar, mas com o preso é difícil” – diria uma agente
penitenciária que trabalhava na portaria do estabelecimento. Jovem também. Ali
todos eram jovens. Jovem vigiando jovem. O espaço era pouco e tinham que fazer
rodízio para deitar nos colchões que não eram suficientes para todos. Cheiro de
suor e de merda misturado a creolina. Um banho de sol por dia, quatro refeições.
Resistiu razoavelmente aos 2 meses e 11 dias entre a prisão e o julgamento do
primeiro habeas corpus que o advogado, contrato pelo pai, impetrou
contra a decisão do juiz que converteu o flagrante em preventiva. Parou de
fumar, mas perdeu peso. “Gostou do Spa, mauricinho?”, zombavam os
colegas de cela. “Perigoso à ordem pública”, disse o juiz. Estranha sensação
essa de se ver definido como alguém “perigoso à ordem pública”, por alguém que
nem sequer o conhecia, nunca o havia visto e nem sequer estava interessado em
perder muito tempo examinando as circunstâncias concretas do seu caso. Inútil
contestar. Rotulado. Perigoso à ordem pública, de um lado; mauricinho, do
outro. “Eu não havia me visto como mauricinho antes...”, pensava. Veio a notícia
de uma visita do advogado. O habeas corpus tinha sido indeferido. A
prisão era necessária para garantir a ordem pública, porque, solto, poderia
“voltar à traficância” e, além disso, era “conveniente para a instrução do
processo”. Nesse dia foi orar com os evangélicos que se reuniam no banho de
sol. Engoliu choro. De volta à cela lhe perguntaram se ainda ia ficar mais
tempo no hotel cinco estrelas. Risadas. “O mauricinho tá tristinho, tá?”. Era
ele quem recebia mais visitas, mais cartas e tinha advogado particular. Todo
mundo sabia. Só podia ser advogado particular. Dividia com um colega mais novo
as coisas que a família lhe trazia nos dias de visita. O rapaz não tinha
visitas, não tinha cartas, não tinha nada. Conversavam sobre tudo. Ele tinha
pena do menino. Dezoito anos, como seu irmão mais novo. Pediu ao seu advogado
que fizesse algo pelo rapaz. O advogado não quis prometer nada, mas disse que
“ia ver o que dava para ser feito”. A Justiça ia entrar em recesso de Natal e
de fim de ano e o advogado resolveu esperar que acabasse o período, para
impetrar o novo habeas corpus, porque o juiz de plantão era conhecido
como alguém que se gabava de nunca haver deferido uma única liminar. Era o caso
de esperar mais um pouco, porque havia chances de reverter a situação e valia a
pena aguardar para a distribuição normal do pedido. Mas, não se sabe como,
“vazou” para o pessoal da cela a notícia de que ele estava “prestes a ser
libertado”. E o mataram dentro da cela. Foi asfixiado. O menino de dezoito anos
foi levado para uma cela “individual” – leia-se, cela com mais duas ou três
pessoas.
O nome
dele eu não sei. Não tem nome, é só mais um garoto. Sei que foi morto na manhã
do mesmo dia em que o advogado iria distribuir o novo pedido. Ninguém pode
saber no que ia dar, mas havia chances. Réu primário, bons antecedentes, não
integrava organização criminosa, essas coisas... O advogado levou a culpa. O
mesmo juiz que se gabava de nunca haver concedido uma única liminar em habeas
corpus, teria dito - segundo o que alguém ficou sabendo - que, naquele
caso, “poderia ter quebrado a tradição de não conceder alvará de soltura em
caráter liminar”. Também não faltou quem opinasse que, enfim, a despeito da
tragédia, a ordem pública saiu ganhando...
Naquela
mesma tarde, chegaram ao estabelecimento 170 presos por tráfico.
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