A
doutrina da escola neutra
Beatriz Vargas Ramos
Professora Adjunta da
Faculdade de Direito da UnB
- “Mãe! A professora falou que a gente deve lutar para construir uma
sociedade livre, justa e solidária. Ela disse também que devemos erradicar a
pobreza, a marginalização, as desigualdades sociais e que não podemos aceitar
os preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de
discriminação.
- Ai, meu Deus! Sua professora é comunista!
- Não, mãe, esse é o artigo 3º da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988.”
Esse
pequeno diálogo circula nas redes virtuais e revela, pela força expressiva do
humor, que o senso comum dispõe de um conjunto de ideias pré-concebidas para a
compreensão de qualquer objeto, alguma coisa, palavras, textos, situações. Revela
também que senso comum não é sinônimo de bom senso. Demonstra mais, que nenhum
pensamento escapa à ideologia.
O
doutrinador mais perigoso é exatamente aquele que não se dá conta de que exerce
doutrinação e, por fazer circular ideias “naturais”, acredita na “neutralidade”
de sua prática inofensiva. Contardo Calligaris (Folha de S.Paulo,19/05/2016), aborda
o projeto “Escola sem Partido”, a partir da proposta principal desse movimento,
o rígido “controle sobre a transmissão de ideologias”. Ele propõe essa reflexão
sobre o tema: “Como proteger as crianças
contra as ideologias que se apresentam como jeitos ‘naturais’ de pensar? Como
evitar que elas aceitem ingenuamente os clichês que são transmitidos como
‘naturais’? Receio que, retirando as ideologias explícitas (que podem ser
combatidas, discutidas e recusadas), só reste para as crianças a ideologia do
círculo da padaria, que é a mais perniciosa, porque parece ser o pensamento
‘espontâneo’ de ‘todos’.”
Seguidores
da “Escola sem Partido” dizem que a escola pública brasileira se transformou em
lugar de “doutrinação política e ideológica”. A solução estaria na prática da
“neutralidade do ensino”. Para garantir a neutralidade, querem instituir
princípios e estabelecer controles, inclusive o controle penal. Os defensores desse
pensamento afirmam que os professores estão “fazendo a cabeça” dos estudantes,
incutindo-lhes “as ideias e os valores do PT e do governo federal nos últimos
anos”. Daí a denominação do movimento, na qual está embutido um juízo prévio, o
de que a escola brasileira tem partido.
Trata-se
de uma visão simplificadora da realidade do ensino e que acaba por ocultar os
verdadeiros obstáculos ao alcance da meta da educação de qualidade. A “Escola
sem Partido” nada tem de imparcial e a defesa da neutralidade carrega consigo
uma categorização de conteúdos e práticas que nada tem de neutra, ao contrário,
pressupõe uma (outra) ideologia. O movimento traz propostas de modificação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que já tramitam no Congresso, em
Assembleias Legislativas de alguns estados, no Distrito Federal e nas Câmaras municipais.
No centro dessas propostas está o controle sobre ideias consideradas de
“esquerda”, ou seja, sobre tudo o que possa ir de encontro ao pensamento e aos
valores conservadores. Alguns desses projetos chegam ao cúmulo de abolir o uso
de palavras e expressões – o que abre a porta para outros banimentos
sucessivos, quem sabe, de bibliotecas inteiras (como no Index Librorum Prohibitorum instituído no século XVI pela Igreja
Católica). Proíbem a utilização de termos como “gênero” e “orientação sexual” e
interditam disciplinas sobre educação sexual (PL nº 1.859/2015). Em poucas
palavras, a proposta da “Escola sem partido” – como se houvesse um campo
adversário defendendo uma escola “com” partido – é conservadora e de direita.
Em
meio às proposições está o PL nº 8.099/2014, de autoria de Marco Feliciano
(PSC/SP), que pretende a inserção do criacionismo nos conteúdos de ensino de
todos os níveis. Está apensado ao PL nº 309/2011 que institui o ensino
religioso como disciplina obrigatória nos currículos do ensino fundamental. O
autor do projeto quer alterar o art. 33, caput,
da Lei nº 9.394/96, para tornar obrigatório o estudo da religião – qual
religião? – quando é a própria Constituição da República que estabelece a
matrícula facultativa do ensino religioso (art. 210, § 1º). A norma
constitucional, em harmonia com a liberdade de consciência e de crença (art.
5º, VI), proporciona a relação democrática entre Estado e religião. Pela mesma
razão, o criacionismo, crença religiosa, não pode ser imposto como conteúdo de
ensino. Ambos os projetos violam o princípio da laicidade do Estado, subjacente
ao sistema constitucional em vigor, sobretudo no tocante à autonomia das
políticas públicas em relação às regras religiosas.
Outro
projeto, o PL nº 1.411/2015, do Deputado Federal Rogério Marinho (PSDB/RN),
institui o controle penal, ao criar um novo crime, o “assédio ideológico”,
punido com detenção de três meses a um ano e multa. Prevê aumento de pena para
“professor, coordenador, educador,
orientador educacional, psicólogo escolar” ou para quem “praticar o crime no âmbito de
estabelecimento de ensino, público ou privado”. Concebido como crime contra
a liberdade pessoal, traz a seguinte definição: “Expor aluno a assédio ideológico, condicionando o aluno a adotar
determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou constranger o
aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o
agente”. Além da redação ruim, o texto é aberto e impreciso, propiciando um
vasto arsenal de subjetivações e juízos morais que resultam fatalmente na
insegurança jurídica. O direito penal não tem papel a cumprir no estrito campo
ideológico e corre o risco de vir a ser mal utilizado e desviado à promoção
pura e simples da caça às bruxas. Ademais, o ordenamento penal vigente, hipertrofiado,
já possui normas incriminadoras suficientes para reprimir comportamentos
atentatórios à liberdade e ao sentimento de dignidade pessoal. A pretensão de
criminalizar o professor por algo como “assédio ideológico” nasce do sentimento
de “perder o filho para o mundo” – note-se que a vítima é “aluno”, o que impede
que o agente possa ser qualquer pessoa, como, por exemplo, o próprio pai. É a dificuldade
de lidar com o fato de que o estudante tem direito a informações diferentes
daquelas proporcionadas pelos pais e acesso a pensamentos distintos daqueles
que os pais querem, eles próprios, impor aos filhos.
A
lei já aprovada em Alagoas, estado líder em analfabetismo e possuidor do pior
índice de desenvolvimento humano do Brasil, simplesmente veta a abordagem de temas
que entrem “em conflito com as convicções morais, religiosas ou
ideológicas dos estudantes ou de seus pais ou responsáveis”. Apelidada “lei da mordaça”, dispõe que
os transgressores, se servidores públicos, estarão sujeitos a penalidades
previstas nas normas administrativas aplicáveis. E para coroar a iniciativa, o
movimento “Escola sem Partido” coloca à disposição dos pais um modelo de
notificação anônima para denúncia desses professores-doutrinadores.
No
PL nº 867/2015, de autoria do Deputado Federal Izalci (PSDB-DF), o movimento “Escola
sem Partido” encontra perfeita tradução. O projeto está apensado a outras propostas
semelhantes (PL nº 7.180 e nº 7.181 de 2014 e PL nº 1.859/2015). Nele figura
uma regra quase idêntica àquela já mencionada na lei de Alagoas: “São vedadas, em sala de aula, a prática
de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a
realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções
religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”.
A
escola não tem e nem deve ter a função de doutrinar os estudantes. Precisamente
por essa razão é que não se pode limitar os conteúdos e atividades aos temas
que não estejam em conflito “com as convicções religiosas ou morais dos pais ou
responsáveis”. O conflito de ideias é inevitável, sobretudo numa sociedade
complexa e plural. Doutrinação é exatamente a ausência de confronto entre as diferentes
visões de mundo. A instituição do pensamento único passa pela censura sobre os
conteúdos escolares e a pela instauração de temas-tabus. Ao contrário do que
aparenta, a proposta é rigorosamente doutrinária. Não há escola sem liberdade
de expressão, sem o exercício da desnaturalização de ideias e conceitos, sem a
possibilidade de crítica. Além disso, a regra está em flagrante contradição com um dos
princípios adotados no mesmo projeto, o “pluralismo de ideias no ambiente
acadêmico”.
Em
1976, aos 15 anos de idade, estudante do primeiro ano do então chamado “segundo
grau”, eu pedi à Professora de História que nos falasse do AI-5, o quinto
decreto emitido pelo governo militar brasileiro (1964-1985). Ela respondeu que
nada sabia a respeito do assunto e seguiu a aula, cujo tema era justamente o
período de Kubitschek a João Goulart. Sabíamos, eu e boa parte dos colegas de
turma, o motivo pelo qual ela nos havia negado uma resposta, estávamos em plena
ditadura militar. Na mesma década de 70, Another
brick in the wall, do Pink Floyd,
que ouvíamos e traduzíamos fora das aulas de inglês, havia se convertido numa
espécie de hino à liberdade de pensamento, contra a rigidez de uma educação
conservadora e sem contato com o mundo fora da sala de aula. Em 1979, como
caloura universitária, eu tinha a nítida sensação de acessar um universo virtual,
ao entrar na Faculdade de Direito da UFMG. Naqueles tempos, o contato mais
próximo que travávamos com as questões de ordem política, social e econômica
brasileiras eram as sonolentas aulas da disciplina “Estudo dos Problemas Brasileiros”,
quase sempre ministrada por algum professor carrancudo, amante da retórica
tradicional e reprodutor da já mencionada “ideologia do círculo da padaria”. Hoje,
37 anos depois, diante dessa “doutrina da escola neutra”, tenho a sensação de
estar no cinema para a estreia de uma nova obra e me dou conta de que já
conheço o filme...
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