Um epitáfio para Hobsbawm
Beatriz Vargas
Ramos
O
sociólogo Demétrio Magnoli brinda-nos com duas aparições na edição da Folha
de S.Paulo do dia 10/10/2012. Na primeira, um texto de três colunas
intitulado “O esqueleto que sorri”, afirma que o autor de Age of extremes (the
short twentieth century: 1914-1991)
“falsifica a história para absolver Stalin”. Resume o articulista, a
“versão” de Eric Hobsbawm sobre a 2ª
Guerra “foi aquela fabricada em Moscou”, afirmação, esta sim, capaz de fazer
sorrir outros esqueletos, mortos ou vivos, porque bem ao agrado daquela direita
que anunciou o fim da história com a queda do muro de Berlim. Na segunda
aparição, ouvido a propósito do julgamento de José Dirceu (“repercussão”,
coluna à direita), o sociólogo oferece o seu ponto de vista: “O STF decidiu
aplicar a lei, que não exige atos de ofício, documentos assinados, gravações
para se condenar”. E firma sua jurisprudência: “Essas exigências têm como fim
assegurar a impunidade de poderosos”. A crítica raivosa e a opinião sobre o
julgamento têm em comum a marca da simplificação catequista.
Somente
quem não conhece nada da obra – ou da vida – de Hobsbawm corre o risco de concluir
que o sociólogo está “desmascarando” um stalinista. O argumento mais forte
nesse sentido é o fato de não haver renunciado “à carteirinha do Partido
Comunista Inglês”. O texto é uma marmita requentada, cuja originalidade está na
sugestão grosseira de um epitáfio para o historiador marxista. O articulista
toma distância da boa crítica para fazer uma execração de base ideológica. Para
ele, que vai buscar o “incontornável” epitáfio em Tony Judt, Hobsbawm deveria
ser sepultado como um homem que “se recusa a olhar o mal de frente e a chamá-lo
pelo nome” e que “nunca confronta a moral nem a herança política de Stalin e
suas obras”. “Se ele seriamente deseja passar o bastão radical para as futuras
gerações, este não é o modo de agir”.
A
citação é um excerto extraído do ensaio de Tony Judt, Eric Hobsbawm e o romance do comunismo, cuja primeira versão foi
publicada no New York Review of Books,
em 20 de novembro de 2003, volume 50, nº 18, sob o título original The Last Romantic – Interesting Times: A
Twentieth-Century Life by Eric Hobsbawm[1],
no qual o autor dedica especial atenção ao livro Tempos Interessantes (Interesting Times), uma narrativa
histórica e autobiográfica de Hobsbawm. A
coletânea de ensaios de Judt foi publicada no Brasil em 2008, pela Objetiva,
com o nome Reflexões sobre um século
esquecido: 1901-2000. O trecho entre aspas, selecionado pelo articulista,
está ao final da página 147.
Claro,
Tony Judt, ele próprio, o autor da crítica, não teria sugerido estas palavras como
epitáfio para Hobsbawm. Muito ao contrário, tendo partido desse mundo quase
dois anos antes do amigo e colega de profissão (Tony Judt nasceu em 1948 e
Hobsbawm em 1917), a ele as endereçou, de maneira corajosa e elegante, enquanto
o criticado ainda era vivo, pelo prazer do debate intelectual aberto entre
“historiadores politicamente comprometidos” – para usar de uma expressão do próprio
Hobsbawm, em artigo (After the Cold War –
Eric Hobsbawm remembers Tony Judt) que saiu na London Review of Books, vol. 34, nº 8, p. 14, em 26/04/2012.[2]
É
recomendável a leitura do ensaio de Judt em sua íntegra (Eric Hobsbawm e o romance do comunismo, pp. 137-150). O que ali se
vê é realmente uma opinião bastante dura, ou “ataque implacável” (implacable attacks), nas palavras usadas
por Hobsbawm (artigo da London Review of
Books), mas, ao contrário do que podem sugerir as três colunas da Folha, em
nenhuma passagem do ensaio de Judt será possível encontrar nada parecido com o
julgamento extremista e desmedido do articulista – “história de cartolina”,
“contrafação da história”, “veredicto de absolvição dos processos de Moscou”, “falsificação
deliberada”, entre outras.
Ninguém
melhor que o próprio Hobsbawm para oferecer uma resposta a Tony Judt. Nos
tempos da Guerra Fria, suas preocupações também
não eram as ameaças soviéticas ao “mundo
livre”, “mas as discussões dentro da
esquerda”; “seu tema sempre foi
Marx, não Stalin e o Gulag” (Yet it
is evidente from Thinking the 20th Century that his basic concern during the acute
phase of the Cold War was not the Russian threat to the ‘free world’ but the
arguments withim the left. Marx – not Stalin and the Gulag – was his subject).
Dentro
da esquerda, registra Hobsbawm, o ideal de seu crítico era a restauração da
social democracia.
No
ponto específico da discussão entre os dois historiadores, o artigo de Hobsbawm,
na London Review of Books, é de
leitura obrigatória para aqueles que não aceitam julgar sem antes dar a palavra
ao “acusado”. Aqui vai um trecho especialmente interessante:
Tony
foi, é claro, tão anti-Stalin quanto qualquer outro, e crítico amargo dos que
não abjuraram o Partido Comunista, mesmo que se tenham provado
satisfatoriamente anti-stalinistas e, como no meu caso, já estejamos lentamente
nos livrando da esperança original de outubro de 1917. Como os sionistas que se
opuseram a encenações de Wagner em Israel, Tony foi dos que deixam a antipatia
política se antepor ao prazer estético, descartando o poema de Brecht sobre
quadros do Comintern, An die Nachgeborenen (Os Admirados por Tantos), como poema “repulsivo”, não
em termos literários, mas porque inspirava pensamentos maléficos aos crentes.
Como
crítica, o texto do articulista da Folha não traz nenhuma novidade, ao menos não
naquilo que constitui o núcleo de conhecidas censuras, velhas e surradas
críticas há muito dirigidas a Hobsbawm, todas elas variações de um mesmo tema central
que é “poupar Stalin ou absolvê-lo”. E isso “por não ter abandonado o partido”
ou não haver renegado o passado de ativismo comunista, argumento igualmente
conhecido e já explorado à exaustão. Eric Hobsbawm nunca omitiu o lugar de onde
estava falando e não se escondeu atrás da autoridade, real ou suposta, deste ou
daquele intérprete da história. Não renegou os tempos de militância comunista,
mas foi tão anti-stalinista como “todo mundo”, pode-se dizer. Pouco antes de
sua morte, às vésperas de completar 95 anos de idade, atravessando, ele mesmo,
quase um século inteiro de vida lúcida e intensa, revela que já estava se
“livrando, lentamente, da esperança original de outubro de 1917”. Sua
historiografia marxista, livre de mitos, sobrevive às “marteladas” de 1989 num
certo muro em Berlim, entre outras razões, porque não escolheu para si a tarefa
de “julgar” a história, mas “compreendê-la” – para usar das expressões de Marc
Bloch.
O que
a crítica de Magnoli tem de mais perverso é que despreza exatamente aquilo que
constitui o grande referencial da memória sobre Hobsbawm, sua luta contra o
fascismo. É o que diz Alexandre Fortes, da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro[3]:
Forjado
intelectual, política e eticamente na luta antifascista, Hobsbawm dedicou uma
longa vida de trabalho intenso a fazer do estudo crítico do passado um
instrumento para ampliar a capacidade dos seres humanos construírem
coletivamente um futuro melhor, desafiando o poder esmagador de fatores
estruturais de diversas ordens.
Em sua
última publicação, lançada no Brasil em 2011 pela Companhia das Letras, Como
mudar o mundo, uma coletânea de vários textos escritos entre 1956 e
2009, esclarece Hobsbawm:
...a
maioria dos capítulos dirige-se a leitores com um interesse maior por Marx,
pelo marxismo e pela interação entre o contexto histórico, de um lado, e o
desenvolvimento e a influências das ideias, de outro. O que tentei fazer foi
mostrar a esses dois grupos que a discussão de Marx e do marxismo não pode
ficar limitada ao debate a favor ou contra, ao território político e ideológico
ocupado pelas diversas e mutantes variações marxistas e de seus antagonistas.
Durante os últimos 130 anos, o marxismo foi um tema importante no concerto
intelectual do mundo moderno e, através de sua capacidade de mobilizar forças
sociais, uma presença crucial e, em alguns períodos, decisiva, na história do
século XX. Espero que meu livro ajude os leitores a refletir sobre a questão de
qual será o futuro do marxismo e da humanidade no século XXI.
A
propósito da “valiosa” historiografia britânica que se seguiu ao fim da 2ª
Guerra, Josep Fontana (História – análise
do passado e projeto social. Bauru, SP: Edusc, 1998, p. 244) aponta, além
de Eric Hobsbawm, também Gordon Childe, Christopher Hill e Rodney Hilton. Por
isso mesmo, quando o articulista, sem medir excessos, no auge de seu delírio
ideológico, apresenta a historiografia de Hobsbawm como “inspirada diretamente
pelas narrativas oficiais fabricadas por Moscou no imediato pós-guerra”, ele
não deve ser levado a sério. Esta é uma lógica parcial, pobre e empobrecedora
que não atinge um homem só, mas toda uma escola de historiadores. Eis a
idolatria ao “monismo da causa”, o sofisma do inquisidor: “todo comunista é
stalinista, logo, propagador da história oficial de Moscou”. A frase é
anacrônica e panfletária. Podia causar algum impacto no Brasil, ao final da
década de 70 e início dos anos 80, quando diversas correntes de esquerda
marxista discursavam como se a Guerra Fria fosse assunto do jornal do dia e
vendiam – ou doavam – seus jornaizinhos panfletários repletos de frases de
efeito. Nesta época, Magnoli era trotskista – não sei se ainda é... Hoje em dia
a frase panfletária soa como dizer que “antissionismo” é o mesmo que
“antisssemistismo”. Não “cola” mais – pelo menos não em todos os países e para
a uma grande parte dos leitores.
A
historiografia de Hobsbawm passou pelas “provas científicas” e sobreviveu a
outras acusações da mesma ordem que lhe foram lançadas no passado. O ataque do
articulista carrega a mesma “justificativa” que determinou a perseguição contra
os historiadores marxistas no pós-guerra, quando foram acusados, “por insignes
mediocridades acadêmicas, como Hexter”, de “trair a dignidade do ofício” (J.
Fontana).
Depois
de 1956, “convencido de que o Partido, por não ter se reformado, não tem futuro
político a longo prazo no país”, Hobsbawm abandona o ativismo comunista,
“embora sem sair do partido”, como repara Tony Judt. Sobre a crise política de
1956, com a intervenção soviética na Hungria, Fontana novamente (A história dos homens. Bauru, SP: Edusc,
2004, pp. 330 e ss) registra que nenhum daqueles historiadores “abandonou, no
trabalho intelectual, uma linha que, embora com mais liberdade, conservava o
essencial da inspiração marxista”, citando Thompson e Hobsbawm, como estudiosos
da “história dos de baixo”, “marcados pela preocupação em recuperar os rostos
da multidão”.
Hobsbawm
não se dedicou à mentira, como também não escolheu ser juiz de Stalin ou seu
biógrafo. Um bom juiz, desses que não dispensam as provas, concluiria que as
acusações do “advogado” Demétrio Magnoli não têm procedência. O historiador não
é o homem que o articulista quer enterrar como um covarde da esquerda que, por
muito tempo, como disse Tony Judt, “evitou confrontar o demônio comunista preso
no armário da família”. Ao revés, ele teve coragem suficiente para “examinar as
próprias certezas e ver como a própria vida de cada um é modelada e remodelada
pelo seu século” (palavras de Hobsbawm para Tony Judt, no mesmo artigo já
citado, que se aplicam perfeitamente ao seu autor). A verdade é que ninguém
pode passar pela história dos três últimos séculos sem fazer referência à obra
do historiador inglês.
O uso elegante
do substantivo “advogado” em relação à postura do articulista da Folha deve-se,
mais uma vez, a Hobsbawm, que numa passagem do mesmo artigo já citado se refere
a Tony Judt nos seguintes termos: “Sua posição-padrão era de profissional da lei: não
de juiz, mas de advogado, cujo objetivo não é nem a verdade nem a
verossimilhança, mas ganhar a causa”. O articulista da Folha não está
interessado na possibilidade de outras leituras ou versões diferentes da sua, quer
ganhar a causa (o “interesse”, a “demanda”), emplacar sua acusação contra o
historiador marxista. Não é que não tenha lido Hobsbawm, é pior. É que distorce
o texto, não consegue ir além da superfície e não considera, em nenhum momento,
o contexto que envolve história (narrativa) e historiador (autor da narrativa).
Pior do que um mau juiz, trabalha com as técnicas de um inquisidor. Ofereceria
ao “acusado” a salvação de sua alma se este tivesse abjurado o “demônio
comunista” e aceitado, com resignação, a “verdade” da inocência norte-americana
durante a Guerra Fria, abraçando, sem reservas, o evangelho capitalista pós
1989. O que é imperdoável em Hobsbawm – para Tony Judt, e genericamente para
Magnoli – é não ter adotado o pensamento, muitas vezes lançado da academia, de
que Socialismo=Gulag. Outro pecado de
Hobsbawm foi contextualizar a importância da URSS na derrota do nazismo e
apontar o fato de que “não está claro sob que circunstâncias (os E.U.A.) poderiam
ter entrado” na 2ª Guerra Mundial, “não fosse Pearl Harbor e a declaração de
guerra de Hitler” (Era dos Extremos,
capítulo 5, “Contra o inimigo comum”).
Nas
páginas de Era dos Extremos, não se
vê a tão alardeada sentença absolutória de Stalin nem a contrafação da história
– bobagens que a mídia brasileira, de maneira mais ou menos incisiva, está
ressuscitando desde a morte recente do historiador inglês. O mesmo Hobsbawm,
entretanto, é apresentado por leitores, que vão de uma direita triunfalista do
fim da história até uma esquerda congelada nos anos 50, por rótulos que variam de
“stalinista” a “anticomunista”. Em que pese não haver mentido sobre Stalin,
presidente da era de ferro soviética que “manipulou o terror em escala
universal”, como um “autocrata de ferocidade, crueldade e falta de escrúpulos
excepcionais, alguns poderiam dizer únicas” (Era dos Extremos, p. 371), sem omitir os gulags, a exploração da força de trabalho de milhões de
prisioneiros, Hobsbawm continuará tendo maus leitores, orientados pela
ideologia que apenas conseguem enxergar no outro, nunca em si mesmos.
Não
falta, portanto, até hoje, quem encontre em Era
dos Extremos a tolerância ou a defesa do stalinismo e mesmo o seu oposto
perfeito, qual seja, o próprio culto ao totem do anti-stalinismo. Essa outra
bobagem, entretanto, não ganha o mesmo espaço nas janelas de ver o mundo que a mídia brasileira, generosamente, abre
para nós a cada dia.
Para
nossa sorte, podemos ler Hobsbawm nós mesmos, dispensando a intermediação do
ex-colunista da Folha de S.Paulo, esta sim, “uma aposta segura de que o leitor
médio carece de informações indispensáveis para refutá-la”.
O fato
de o historiador inglês “ter mais leitores no Brasil do que na Grã-Bretanha”,
como diz o articulista, serviu para que este mais uma vez o desqualificasse,
atribuindo o fenômeno à “recepção laudatória” de “intelectuais inconformados”
com a queda do muro de Berlim. Aí está embutida uma inexplicável arrogância da
parte de alguém que integra uma universidade brasileira – ser lido em português
do Brasil seria evidência de inferioridade da obra?
Acontece
que Hobsbawm não é o historiador mais conhecido no Brasil. É o historiador mais
conhecido no mundo inteiro. Ele foi traduzido em mais de 40 idiomas. Disse Tony
Judt que “em partes da América do Sul – especialmente no Brasil – ele é um
herói cultural popular”. Apesar do exagero de seu colega – “herói cultural
popular” – que não consegue disfarçar a pontinha de inveja do outro
historiador, deve-se registrar o grande feito, porque, no Brasil, afinal, não é
fácil a concorrência com o Jornal da Globo e com a novela das 8. E isto,
sobretudo, em tempos como os atuais, em que a maioria das pessoas se contenta
com a história dos fotógrafos e os próprios historiadores têm pouco espaço
entre os leitores que estão fora da academia.
O
articulista da Folha dá preferência a uma versão parcial, a uma versão que
relegue ao segundo plano, ou apague em definitivo, o papel desempenhado pela União
Soviética, ou mais que isso, o papel do socialismo, na derrota dos facismos, reduzindo-a
à figura de Stalin e decretando que a “URSS não triunfaria sobre Hitler sem a vasta ajuda militar americana”. Convém
registrar que Hobsbawm não trata da atuação norte-americana na perspectiva de
“ajuda”. Ele fala de uma situação histórica excepcional em que EUA e URSS
“fizeram causa comum” contra a Alemanha de Hitler, “porque a viam como um
perigo maior do que cada um ao outro” – o capítulo 5, parte 1, de Era dos Extremos intitula-se “contra o
inimigo comum”. A frase simplista de Magnoli sugere, equivocadamente, o
maniqueísmo da obra, quando, na verdade, é o articulista que não consegue
disfarçar essa tendência.
Em
conclusão, não estou afirmando que Hobsbawm está acima de críticas ou livre de
erros. Ninguém está. A questão é que o bom crítico, por mais duro que seja, tem
a obrigação de não ocultar o objeto de sua crítica, porque precisa lidar com a
complexidade da obra criticada, sob pena de reducionismo, de simplificação. No
meu modo de ver, não é fácil realizar uma boa crítica, porque esta é uma arte
que pressupõe, em primeiro lugar, saber ouvir. Essa abertura ao horizonte do
“outro”, o criticado, é, como eu entendo, algo que não se confunde com
passividade, mas é pressuposto inarredável de honestidade intelectual. Numa
palavra, o bom crítico não se desincumbe dessa tarefa apenas por demonstrar seu
talento em construir boas frases de efeito. Ele deve demonstrar, acima de tudo,
que conhece o que critica. A crítica reducionista é ainda pior do que a pior
obra criticada.
A melhor
resposta a esse tipo de crítica foi dada pela ANPUH – Associação Nacional dos
Professores Universitários de História – a uma certa revista de má visão e se
aplica inteiramente às três colunas do articulista:
Nós,
historiadores, sabemos que os homens são lembrados com suas contradições, seus
erros e seus acertos. Seguramente Hobsbawm será, inclusive, criticado por
muitos de nós. E defendido por outros tantos. E ainda existirão aqueles que o
verão como exemplo de um tempo dotado de ambiguidades, de certezas e dúvidas
que se entrelaçam. Como historiador e como cidadão do mundo. Talvez Veja,
tão empobrecida em sua análise, imagine o mundo separado em coerências
absolutas: o bem e o mal.
Em outra
ocasião, o sociólogo já se mostrou um mau leitor ou, quem sabe, um não-leitor,
a propósito da monografia de Karl Philipp von Martius, o botânico que venceu o
prêmio oferecido pelo IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em
1840, para quem apresentasse o melhor trabalho sobre como escrever a história do
Brasil, ou, como conferir uma identidade ao Brasil-nação, ou ainda, como disse
Lilia Schwarcz, como “inventar uma história para o Brasil”. O sociólogo viu na
monografia de Karl von Martius a ideia de que a história do Brasil deveria ser
contada como uma “história de mescla de raças, o encontro, a confluência de
três rios, o rio dos africanos, o rio dos europeus e o rio dos índios”, numa
época em que os E.U.A. e a Inglaterra queriam separar as raças e promover o
retorno dos negros à África – e, mais que isso, estavam fundando países que
iriam receber de volta os ex-escravos, como a Libéria e a Serra Leoa. “Esqueceu-se”,
no entanto, de dizer que o Brasil também embarcou muitos negros libertos para a
África, entre os séculos XVIII e XIX, cujo destino era a cidade de Lagos (Èkó, em iorubá), na Nigéria. O que ele
destaca como “interessante” é que, enquanto no Brasil se falava “na mescla, na mistura”,
os outros países “estavam falando na separação de raças”. Este seria, para
Demétrio, “o ponto de partida legal para se pensar uma ideia de nação aqui no
Brasil”. Propõe, na verdade, a refundação da ideia de democracia racial brasileira
que só muito recentemente vem sendo desmistificada.
Magnoli
sugere um retorno ao ponto de partida lançado em 1840, exatamente aquele que, nas
palavras de José Carlos Reis, “se entranhou profundamente nas elites e na
população brasileira”, pois o que Von Martius lançou foram “os alicerces do mito da democracia racial brasileira”, o
“elogio da colonização portuguesa” que, mais tarde, vai reaparecer com Gilberto
Freyre, como “reelogio”, na abordagem cultural e “empática” de Casa Grande & Senzala – ainda de
acordo com José Carlos Reis (As
identidades do Brasil, vol 1. Rio:
FGV, 2007).
Ele não vê,
ou não quer ver, que os três rios – “Precisa ler!”, como disse Lilia Schwarcz –
compunham uma unidade construída na base da hierarquia e na diferença entre
brancos, negros e indígenas. Lilia Schawrcz explica, em entrevista no programa
de Jô Soares: Von Martius dizia que “há um rio importante, muito caudaloso, o
rio branco”, um outro rio “mais ou menos” e “que faz muitas curvas”, o rio
negro, e finalmente um “rio pequenininho que é o rio indígena”.
“No
essencial” – diz José Carlos Reis a propósito do “ponto de partida de Magnoli”
– “a história do Brasil será a história de um ramo dos portugueses, pois o
português foi o conquistador e senhor, ele deu as garantias morais e físicas ao
Brasil”, “foi o inventor e motor essencial do Brasil”. “Quanto às demais raças,
o historiador filantrópico, humano e profundo cristão, não poderá deixar de
abordá-las. Deverá defender essas raças desamparadas”. Por isso, “dará alguma
ênfase à história dos indígenas”, mas, “quanto ao negro, ele será breve,
oferecendo poucos dados e propondo algumas poucas questões”.
Penso que
Magnoli leu Von Martius, mas aqui também distorceu o texto. Aqui novamente se
comporta como o homem de uma causa única, que prefere um processo sem provas,
afinal, exigências probatórias não passam de firulas que existem apenas para
assegurar a impunidade – “dos poderosos”, acrescenta. Ele não busca a
verossimilhança com a preocupação de um juiz, mas apenas quer “ganhar a causa”.
É sabido que o sociólogo é um forte opositor da política de cota racial. Não
seria absurdo concluir, nessa linha, que o ponto de partida de Von Martius
seria um bom argumento para sua causa, desde, é claro, que os “três rios” não
sejam apresentados exatamente como os descreveu o alemão que ganhou o primeiro
concurso de monografias do IHGB.
Como
crítico, é advogado; como juiz, é inquisidor e como ex-articulista da Folha de
S.Paulo surge e ressurge como as ondas na qualidade de “opinador de plantão”.
Desta vez, revelou-se um entendedor das leis processuais. Sua tese é clara, provas
são exigências para absolvição dos poderosos (“...atos de ofício, documentos
assinados, gravações para se condenar”, são “exigências” cuja finalidade é
“assegurar a impunidade de poderosos”). É bom registrar que, à parte as
discussões sobre o grau de certeza, a verossimilhança, o indício – algo
provável entre o certo e o incerto, todos nós temos direito a opiniões. Ao STF
compete julgar. De minha parte, trago dentro de mim uma esperança, a de que a
opinião de Magnoli não crie “jurisprudência”, pois não se faz justiça com dois
pesos e duas medidas. Além disso, a justiça de todo dia não se realiza sobre
“os poderosos”.
Condenar
José Dirceu, para muitos, é condenar o PT. O mesmo PT a quem Hobsbawm, em Tempos Interessantes, considera um
exemplo político capaz de assegurar consequências e desdobramentos permanentes
(afirmação esta que também pode ressoar em certos ouvidos como outro “pecado”).
Na história
como no direito, o futuro é construído a partir do presente. Não há um passado
que se imponha por si mesmo ou que se imponha como mera hipótese teórica, como
crença ou como causa. O problema do historiador com o passado é saber como
interrogá-lo, diria Marc Bloch, “a ignorância do passado não se limita a
prejudicar o conhecimento do presente, comprometendo, no presente, a própria
ação”. Enfim, penso que é o futuro que está em jogo.
Antes de
ser fuzilado pelos alemães em 16 de junho de 1944, Marc Bloch trabalhava em seu
último ensaio, publicado em 1949, por Lucien Febvre, com o título Apologie de l’histoire ou Métier d’histoiren.
Segundo Bloch, nenhuma hipótese é evidente, é preciso prová-la. A última frase
do livro é particularmente importante para os tempos atuais: as causas (aqui no
sentido de “explicações”), em história como em outros domínios, não são
postuladas, são buscadas.
Beatriz, teu texto merece ser divulgado amplamente, sobretudo agora que, para não serem lançados ao ostracismo, muitos que se serviram das obras de Hobsbawm serão capazes de não só o negar como de fazer coro com os que o desejam apagar da fotografia.
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