50 anos
Beatriz Vargas Ramos
Um dia eu vim...
Não me lembro como nem quando.
Sei do que me contaram...
Que vim à força, a fórceps, tenaz
Eu não sabia como foi ou como seria,
Nem sei se queria, só sei que cheguei.
Nada escolhi.
- Ninguém escolhe –
Mas tive sorte, eu tive amor.
Depois veio o tempo do medo.
Tempo lento, paralisado,
Sem saída, sem futuro.
Tempo de palavras sem fala,
Meu silêncio.
Tempo da consciência do medo.
Medo da lua, do escuro, do trovão.
- Atavismo? Acho que não... -
Tempo de desamparo e de abismos,
Da escola-prisão, da cidade-prisão.
Naquele tempo lento somente o rio era movimento...
O trem-de-ferro, minha metáfora do mundo,
Mundo que eu não conhecia, mundo que não era meu.
Tinha pressa de viver, de seguir os trilhos,
Mas não saí da estação.
A ponte imóvel, a pedra imóvel,
A hora dos sinos, do apito da fábrica,
Surpresa nenhuma, nenhuma transformação.
Ritmo de velhos em procissão.
A mesma festa de São João.
Só o cinema fechou.
Caminhos batidos.
Faria Lemos, Carangola, Catuné,
Pedra Dourada, Espera Feliz,
Uma vez Manhuaçu, Manhumirim,
Porciúncula, Natividade, Varre-Sai.
O ir e vir da escola:
- “Bom dia, Dona Dinorah”!
- “Boa tarde, Seu Olinto”!
O prédio branco do hospital,
A cadeia cinza, a escola cinza,
A praça da matriz e as murtas podadas em forma de bichos.
Desfilam os loucos sobre os paralelepípedos da rua principal.
E tinha Sá Eulália em visitas à casa de minha avó.
- Sá Eulália não acreditava em arranha-céus -
Foi escrava, todos diziam, e ela confirmava,
Mas não tinha idade, não se lembrava, de tão velha.
Tinha o Homem do Palmito que batia de casa em casa:
- “Olha o palmito”! – e eu fugia dele, com medo do surrão.
O hotel ainda está lá, hoje se chama “Colonial”.
O trem da Leopoldina não existe mais.
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Meu pai me acudia nas noites de pesadelo,
Eu chamava meu pai que me contava histórias:
“Nesse surrão entrei, nesse surrão morrerei,
Por causa do brinco de ouro, que lá na pedra deixei”...
Minha mãe cantava e eu dormia.
Meu pai gostava de Sarita Montiel, La Violetera
- María Antonia Alejandra Vicenta Elpidia Isidora Abad Fernández -
E ouvia no rádio a Ângela Maria.
E eu repetia: “Nikolas Anlexandrovich Eristoff”
E “Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim”
- Eu gostava de provocar o riso, ainda gosto –
Em maio, minha mãe me vestia de anjo azul.
Minha irmãzinha era o anjo cor-de-rosa, tão bonitinha...
Triste anjinho era eu...
(Minha mãe era a única que pensava
Que eu seria a rainha da primavera da Escola).
Maio era o frio e sempre será o cheiro de café com leite,
De pão quente com manteiga, de bolo assando,
Cheiro de pão de batata no forno à lenha da vó Dedê,
De goiaba no pé, de goiaba no tacho.
Dezembro era a missa do galo, nozes e rabanadas,
Passeios no Jipe do meu pai, na estrada de terra para Varre-Sai.
E as mangueiras do pomar...
Mais adiante a solidão me aguardava.
Mundo hostil, sem amigos.
- Naquele tempo eu ainda não sabia
Que não me pertencia o fardo que suportei -
Sem defesa, sem razão.
Sem mar, sem filosofia.
Minha, só minha, era a dor que eu sentia,
Aquela dor que era minha,
Uma dor somente minha,
Minha dor que eu carreguei.
Cerca de arame farpado.
Feia, magrela, pés chatos, boca suja.
No lado gauche da vida me confortei.
Estranha philia de negra e judia
- O navio negreiro, espumas flutuantes, a história de Anne Frank -
Me afeiçoei aos poetas, aos miseráveis, aos doentes,
Aos bandidos e aos dementes,
Aos hereges e aos mal agradecidos eu me aliei.
Ah, se eu pudesse ter minha temporada no inferno!
Ah, se eu fosse Rimbaud!
Ah, se eu falasse francês e fumasse ópio...
Se me mudasse pra Paris!
Se morresse jovem, se ficasse tísica,
- Alguém teria pena de mim? -
Ah! Se eu fugisse com o circo mambembe,
Se os ciganos me levassem pra longe,
Se eu partisse no disco voador...
Se eu nunca mais voltasse, se não sofresse mais.
Alma pequena, afligida e torturada,
Construí meu próprio gueto,
Meu quilombo, meu refúgio...
Sob as copas exuberantes das mangueiras do pomar
Eu me escondi.
Me trancaram no armário, tomei caldo na piscina,
A torcida queria se vingar de mim...
Apanhei muito, mas também bati.
Até aqui cheguei...
“Do tempo que sobre a terra me foi concedido”
Já se passaram 50 anos.
Vivi, sobrevivi.
Graças à cesariana, ao hormônio sintético
E às drogas de controle do nível de açúcar
Sou viável no século XXI.
Já teria morrido três vezes no passado...
Eu tinha minha irmã, minha mãe, meu pai, meu avô,
Meu aconchego, minha proteção.
Eu tinha ciúmes do meu irmão.
Meu irmãozinho, leãozinho, nossas brigas sem razão...
Eu não tive tempo de contar ao meu pai
Que meu ciúme ficou para trás...
Ah! Quantas coisas eu nunca mais pude contar ao meu pai...
Nas férias eu tive amigos, meus primos,
Minha Monark vermelha, meus desenhos, meus bichos
- Godofredo de Bulhões, Rolinha, Petit Pois
Os porquinhos da India, o jabuti, o cachinguelê -
Meus livros, minhas bonecas de papel,
Meus sonhos, meus planos.
Tinha a Olivetti portátil que meu pai trouxe do Rio,
Meus escritos, meus poemas... meus afetos,
Minha Professora, Dona Gilka, meu anjo da guarda,
Tia Edith, tão boa, tão sozinha, tão tristinha,
Minha doce avó Filhinha,
Meu amigo Zé Aguiar, que levou pra sempre meu Mar de Mineiro.
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Cresci... chegou o tempo em que eu sabia tudo,
Podia tudo e não temia mais.
Belos Horizontes se abriram,
Abri os braços, enchi os pulmões.
Era o tempo da amizade.
Depois muitos ganhos e perdas
E também muitos enganos.
Vidas no fim e no começo.
As viagens que nunca fiz,
Os abraços que nunca dei,
Todos os vinhos que eu bebi,
Todos os choros que eu chorei...
Ah! Se eu fosse bailarina,
Se eu tocasse piano, se eu fizesse música...
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Amadureci...
Soltei o verbo, soltei a franga,
Não tenho verba, não acumulei.
Amores vieram e amores passaram.
A criança desamparada também passou.
Nada dura cem anos,
Só a solidão dura cem anos...
Vieram meus filhos, entendi minha mãe.
Ah! Os filhos ensinam!
Como são amados os filhos!
Por causa deles, entendemos melhor o amor,
O amor aos outros e aos filhos dos outros.
Eles são para sempre... os filhos.
Eu também quero netos!
A eles vou ensinar todos os palavrões que eu sei
- Os melhores palavrões são em português -
Tenho dúvidas, cometo erros,
Pobre de quem nunca erra...
Minto e devo, devo e não minto.
Ainda choro, sofro outras dores só minhas.
Tenho medo da loucura, medo de perder a memória,
De ficar cega, de perder os filhos, medo de ficar velha senil.
- E também um medo indescritível de barata -
Não sou patriota, não sou de direita,
Não sou otimista nem fundamentalista,
Não gosto de sofrer.
Nada de vítimas, nada de carrascos.
Exorcizei a culpa confirmada pelo batismo.
Nenhum Deus.
Não preciso de um pai, não quero senhores nem reis.
Posso ter as ondas do mar, posso ver o mar,
Posso sentir o vento no rosto.
Ah! Se eu fosse jovem outra vez.
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Um dia eu vou embora,
Não sei como
- Ninguém sabe -
Só sei que vou partir,
Voltar para o lugar de onde eu vim.
Sei que vou, mas vou sem medo,
- Não tenho mais medo do escuro, ele faz parte de mim –
Sem inferno e sem paraíso.
No fim há um poço cego, diz o poeta,
Caminho só de ida.
Mas assim também é a vida,
Não tem volta...
Talvez, quem sabe, alguma luz.
Já me conformei com a partida,
O fim é menos insuportável que a ideia de nunca ter fim.
Só não queria ir embora no meio da festa...
Não levo bagagem,
Não preciso de nada,
Meu vôo será leve e sem controle,
Apenas vou... quero me deixar voar.
Nada me pesa, recusei a herança do ódio.
Irei em paz,
Sem culpa nem perdão,
O perdão precisa da culpa,
Eu não tenho culpas e nem culpados.
Fiz escolhas,
Nenhuma escola me fez.
Eu sou de todo lugar, qualquer lugar, lugar nenhum.
Só queria viajar... os trilhos, o mar.
O rio trágico e seus barcos fantasmas, o trem-de-ferro.
Ah! O trem...
Nunca mais o trem.
(Fevereiro de 2011)
Beatriz... lí este poema em voz alta. Como costumo sempre o fazer. Sinto-o melhor. E terminei-o... com a voz embragada. Há tantos pedaços de mim...!!
ResponderExcluirMeu respeito profundo a este lindo poema.
Minha admiração ao vosso trabalho.
Sigo-a, então.
Beijos de muito bem querer, poetisa!!
Parabéns por tamanha sensibiliade...
Karal Mello ❥¸¸¸¸.☆¨¯`♥...♥❥ƸӜƷ ♥ ƸӜƷ
Karal, que prazer receber sua mensagem! Sinto-me feliz por merecer uma apreciação assim tão bela e sensível. Cada palavra sua me toca profundamente e nos aproxima, como nos pedaços que você encontrou de seus. Agora sim, o texto se tornou um poema de verdade, o que só acontece nesse encontro emocionado. Isso é que faz sentido na poesia! É uma honra poder contar com sua leitura. Seja bem vinda à sombra da mangueira! Obrigada pelo carinho e muitos, muitos beijos de bem querer a você também (adorei essa sua frase).
ResponderExcluirQue vida plena, Beatriz! Continue dividindo conosco tamanha riqueza. Eu quero estar presente na sua festa. Sobre os seus medos, temos muitos em comum. Depois sentamos no boteco e eu te conto. Um beijo grande procê.
ResponderExcluirCirilo, que saudade! Você, como sempre, me honrando com sua leitura e seu olhar maravilhoso sobre todas as coisas. Estou sumida, não é? É a tese... os poemas ficam no intervalo. Eu faço questão da sua presença na festa dos 50, sua, da Alice e da Dodora, todos meus queridos. Quanto aos medos... sim, temos muita conversa para levar nesse nosso prometido boteco. Grande beijo e obrigada pelo carinho.
ResponderExcluirCarlos Lhanos, Carlinhos, Protásio, Karla Mello (agora sim com a grafia certa do seu nome) e Gilson, que alegria encontrar vocês aqui na sombra! Sejam muito bem vindos! Grande abraço e obrigada por dividir comigo os olhares, os sentimentos e os sentidos sobre esse nosso "estar vivo"...
ResponderExcluirÊi, Ana Paula! Seja bem vinda à sombra da mangueira, que felicidade encontrá-la por aqui. Grande abraço
ResponderExcluirBeatriz,estou sem palavras... Já li, reli várias vezes. Embora seja "alguns" anos mais velha, fiquei com uma inveja muito grande de você: queria ter esse dom maravilhoso de colocar as lembranças em palavras.Fiquei lembrando do meu aniversário de 50 anos, não me conformava, desliguei o telefone, até os votos de parabéns me incomodavam.Hoje tudo passou e assumi com orgulho minha condição de avó da Luiza.Bjos.
ResponderExcluirDodora, você é uma avó exemplar, uma mulher linda e inteligente, uma excelente amiga e uma mãe maravilhosa. Eu tenho muito a aprender com você e não acho que seja só por conta dos seus "alguns" anos a mais... acho que é por sua alma sensível e por sua sabedoria. A amizade e o respeito que o Cirilinho tem por você, aliados às virtudes de caráter desse garoto genial, é a prova mais viva e eloquente do que estou falando. Eu não sei se tenho esse dom de que você fala, ao menos não do modo como eu gostaria de ter - você é que é generosa comigo. Acho que, na verdade, perdi foi a vergonha de escrever e, sobretudo, de exibir o escrito. Eu também sinto, confesso, uma certa dificuldade de me conformar com os 50 anos. O que mais dói é saber que a juventude ficou para trás. Por outro lado, há muitos ganhos e é difícil abrir mão deles também. Por via das dúvidas, também vou desligar o telefone no dia 30... Beijão procê
ResponderExcluirBia, 50 anos é exatamente a diferença de idade que tenho a menos que meu pai. De fato é uma diferença a menos mesmo. Nesses 50 anos tenho certeza que ele teve a portunidade de aprender e viver muita coisa e eu fico imaginando como será comigo, se terei essa passagem tão duradoura e intensa por esse mundo... faço questão de ter. Faço questão de chegar aos 50 e olhar pra tras como você pode fazer também e ter muito o que lembrar, de poder sorrir sozinho pensando nas memórias das alegres, apertando o coração com aquelas mais tristes, mas, sobretudo, ter algo a compartilhar com as pessoas queridas mesmo que não saiba de onde vim, pra onde vou. Isso você pode fazer de sobra, nos poucos anos que convivemos cada momento foi de aprendizado com você, alegria por tê-la como amiga e muita (mas muita mesmo) admiração, principalmente por uma de suas melhores qualidades: você emana alegria e juventude, aliadas à uma sensibilidade e sabedoria ímpares. Você é a pessoa mais jovem (na melhor acepção da palavra) que eu conheço.
ResponderExcluirGrande beijo.
Marcos