Beatriz Vargas Ramos
Assumo, sou fã do gerúndio! Sempre fui e sigo sendo! Fico pensando sobre o que seria de nossa comunicação sem a boa e velha forma verbal que eu aprendi a amar antes mesmo de aprender a ler...
Meu filho mais velho, Zé Roberto, tinha lá seus 4 anos de idade, quando me forneceu a prova definitiva e vibrante da expressividade do gerúndio, a própria razão de ser dessa maravilhosa e imprescindível forma nominal do verbo. O Beto comia, com garfo, colher e mãos, um talharim à bolonhesa que eu havia feito especialmente para ele, com todo esmero. Eu, com aquela satisfação que toda mãe tem de alimentar o filho, não resisti e o provoquei a manifestar sua opinião sobre a comida:
– Gostou do macarrão, filhote?
Ele olhou pra mim com o rosto sujo de molho, mas nem por isso menos sério, e falou com um certo ar professoral:
– Não gostei, mãe... ainda tô gostando!
(Ele acentuou aquele “ainda”, esticou a pronúncia do “i” – “aiiiiiiiinda” – para facilitar o entendimento da frase).
Claro que faz sentido! É como se ele dissesse: “não é possível que você não vê o que está acontecendo, eu estou em pleno ato de comer”!
Ele não queria deixar dúvida de que não havia terminado de comer, que precisava de mais compreensão da minha parte, mais paciência, mais tempo para que pudesse, somente ao final, pronunciar seu veredicto. Ele ainda estava saboreando, comendo, gostando... A ação estava em andamento.
Com o inigualável auxílio do gerúndio, qualquer um pode ficar entregue ao ato de saborear macarrão, ficar fazendo isso de que está gostando, porque uma hora acaba... aí, sim, pode dizer se gostou... mas, por enquanto, que lhe seja permitido ainda estar gostando... Só o gerúndio pode fazer isso, representar assim o presente que se quer eternizar.
Imagine a angústia de alguém para exprimir essa exata ideia em palavra se não houvesse o gerúndio... é ele quem transporta esse sentimento que quer acontecer como verbo. Aí está uma ideia de ação em desenvolvimento, nem passado nem futuro, que somente é possível com o gerúndio.
Não! Por favor, que ninguém me venha dizer que nós, brasileiros, ainda continuaríamos (sendo) brasileiros se, ao invés de dizer estou gostando, disséssemos – ou, pior, fôssemos obrigados a dizer – estou a gostar.
Ah, não! Tem dó... Estou a gostar, estou a comer, estou a soltar pipa, estou a dançar o vira, estou a cozinhar o bacalhau, estou a ficar brava comigo mesma, enfim, todos os estou a isso ou àquilo... é lusitano demais! Não sei dançar o vira, embora nada tenha contra ele, aprecio o bom bacalhau e meu avô era português, mas, por favor, não sinto a alma apaziguada ao dizer estou a gostar, quando minha vontade é declarar que estou gostando. Meu jeito de gostar requer o gerúndio para exprimir esse gostar em pleno desenvolvimento, esse gostar na sua continuidade, na sua duração, o gostar ainda não interrompido, pleno, não finalizado.
“Que seja infinito enquanto dure”, diria Vinícius... O gerúndio é isso, essa duração, é mais que isso, é a eternização do presente, o infinito.
Acho que se eu dissesse ao namorado estou a gostar de ti ele não acreditaria. Se ele me dissesse o mesmo eu não poderia conter o riso. (Impossível não lembrar das frases trocadas pelos amantes portugueses em A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro).
É exatamente por amar o gerúndio que tanto me dói o uso, caracterizadamente urbano e mercadológico, que se difundiu por ação dos operadores de central de chamadas empresariais e/ou comerciários em geral. Quem nunca foi açoitado pela frase “o(a) senhor(a) vai estar tendo a oportunidade de escolher qual a melhor forma de pagamento”? Bem, é verdade que o estar tendo é muito radical, mas o “estarei transferindo sua ligação”, ou o “vou estar conferindo seu cadastro”, “vamos estar enviando”, “vamos estar resolvendo” são comuníssimos. E o “não vai estar dando para estar fazendo”? É a overdose, socorro, é letal!
Muito já se disse sobre esse gerundismo, inclusive que ele é álibi para o não compromisso, um substituto para o tradicional “um minuto, por favor” ou “espere só mais um segundinho” que, como se sabe, têm o mesmo significado de “desista” ou “é melhor esperar sentado ou voltar no mês que vem”. É, numa expressão já bem incorporada à linguagem de todo dia, o (também gerúndio) “vá esperando”!...
Esse mau uso – e abuso – tem tudo a ver com a adaptação que fazemos, em nome da imitação e do culto ao deus mercado, do idioma inglês e que chega no kit terceiro mundo exportado, sobretudo, pelos E.U.A. – aliás, desde os anos 40, com o Zé Carioca. A existência desse uso escorregadio do gerúndio é inegável, mas não é ele o vilão da história!
Por isso, quero, aqui, deixar claro meu repúdio a qualquer tentativa de condenação do gerúndio por causa de seu mau uso. Isso seria ainda mais abominável que o próprio gerundismo. Seria, como se diz de vez em quando, jogar fora a criança junto com a água do banho.
Ora, o gerúndio é muito mais do que bom, é vital. É como o ar. De tão necessário nem o notamos até nos depararmos com a violenta ameaça de sua privação. Aí é o pânico total, não dá para viver sem ele...
O que seria de todos os considerando do mundo? E dos falando nisso, falando sério, pensando bem, mudando de assunto? Como preparar o chá sem água fervendo? – embora digam que isso não é muito brasileiro, pelo menos em Minas Gerais sempre foi com água fervendo... E o que dizer dos inúmeros títulos das inúmeras teses das ciências sociais? (Brincadeirinha....)
O gerúndio está presente na boa literatura brasileira e não está ausente da poesia. Do primeiro caso, uma passagem bem típica da prosa de Guimarães Rosa, em A estória de Lélio e Lina:
– Ô morena! – gritou o Mingôlo. – Morenando sempre mais?” – Ora veja! – ela respondeu de lá. – Cê quer brancura, ou quer fartura?...
Retirar esse gerúndio do texto é amputar o texto. Trata-se de verdadeiro gerúndio, ninguém pode negar.
Um exemplo do segundo caso, com Drumond, em Os últimos dias:
De ver passar este conto: o vento
Balançando a folha; a sombra
da árvore, parada um instante,
alongando-se com o sol, e desfazendo-se
numa sombra maior, de estrada sem trânsito.
O gerúndio é encontradiço nas letras de sambas brasileiros, como, por exemplo, o Eu bebo sim, de Luís Antônio, sambista carioca e autor do clássico Barracão: “Eu bebo sim, estou vivendo, tem gente que não bebe está morrendo” (que, na tradução lusitana, seria: “eu bebo sim, estou a viver, tem gente que não bebe está a morrer”... como se vê, não dá!)
Aliás, gerúndio é um nome prenhe de poesia, uma palavra lírica... Faça o teste, pronuncie com calma, sílaba por sílaba... não parece que algo está gerando e sendo gerado ao mesmo tempo?
Enfim, é preciso sair em defesa do direito de todos os brasileiros ao bom uso dessa forma verbal, defendendo o gerúndio, ou gerundiando para ser feliz!
Beatriz, lendo seu texto fiquei matutando horas, com imensa admiração (e inveja, no bom sentido),pela sua maneira deliciosa de escrever.Só agora me dei conta de como usamos e abusamos do gerúndio. Parabéns e beijos.
ResponderExcluirÊi, Dodora, que coisa tão boa poder contar com sua leitura, muito obrigada. Melhor ainda é merecer seus comentários tão generosos. É verdade, usamos e abusamos do gerúndio...
ResponderExcluirE, falando em gerúndio, por favor, continue lendo, continue comentando, continue me honrando com sua atenção.
Beijos,
Beatriz
Beatriz, ler o seu blog é uma grande degustação literária. Cada frase deve ser apreciada devagarinho. Vejo aqui mais um texto fabuloso. Abração!
ResponderExcluirMuito bom, como sempre. Estarei divulgando.
ResponderExcluirGrande beijo
Marcio
Continuo adorANDO o que vc escreveu. Afinal, ele fica ecoANDO na minha cabeça! rs
ResponderExcluirBeijos saudosos,
Lu
Meus queridos, reunidos na minha mente e no meu coração, obrigada pelo prestígio que vocês me dão ao ler o que escrevo aqui na sombra...
ResponderExcluirÉ uma alegria enorme poder contar com os comentários deliciosos de vocês! Com os elogios, então, nem se fala!
Beijão pro Cirilo, aí em Dili, no Timor, beijão pro Marcio e pra Lu aqui mais perto, em Brasília, DF. Vocês três nem se conhecem, vejam só... "fiquei a pensar"... uma sombra de mangueira é um excelente lugar de encontro (ainda que virtual). Verdadeiro luxo, esse sim! Obrigada pela visita, meus queridos.
Eu vou estar refletindo sobre isso com mais atenção... Rs
ResponderExcluirEstou brincando (ói ele aí rapaz). Adorei o texto e o blog, Bia. Passarei a acompanhar! Beijos
Ôi, Natália,
ResponderExcluirprazer encontrá-la por aqui! Que bom que você gostou. Volte muito, tem um lugar especial pra você aqui bem à sombra.
Beijos,
Beatriz
Legal, Beatriz Vargas Ramos. Mas gerúncio todo mundo usa o tempo todo. Assim como você demonstrou no seu texto. O que dói é o vou estar viajando, vou estar verificando o defeito, vou estar ...ando , ...ando, ...ando.
ResponderExcluirNo mais estou comemorando até agora, bebendo, dançando e beijando muito. (Marcelo P)
Marcelo P ou Cometaon, tá valendo!
ResponderExcluirSeja bem vindo! E obrigada pelo interesse e pelo comentário tão simpático. Continue apostando na alegria! Abraço