Foi assistindo ao primeiro debate do segundo turno entre os dois candidatos à presidência da República que eu fiquei sabendo que a mulher de José Serra, Mônica, havia dito que Dilma Rousseff “é a favor de matar criancinhas”. A frase teria sido dita por Mônica Serra para traduzir, a um interlocutor – eleitor de Dilma! – esta outra afirmativa: “é a favor do aborto”. Segundo matéria publicada no dia 12 de outubro, na Folha de S.Paulo, caderno A, página 9, Mônica “alegou ter usado a expressão ‘criancinha’ porque o interlocutor não sabia o significado de feto”. Assim, nessa versão, de maneira mui didática, a Sra. Serra teria apenas fornecido ao ignaro eleitor de Dilma um sinônimo para “feto”.
Encontrei um sinônimo melhor: “organismo humano em desenvolvimento, no período que vai da nona semana de gestação ao nascimento” (qual seria o sinônimo da senhora Mônica para embrião?). Uma definição, digamos, menos indefinida, abre uma conversa sobre o aborto, mas a de Mônica Serra fecha qualquer debate. (Se é que se pode falar de definição indefinida... Neste caso, eu até acho que sim, porque se trata de uma definição que não define). A “explicação” de Mônica Serra, antes uma antiexplicação, impede o acesso à palavra e ao seu sentido. Esconde, desvia, falsea, engana, distorce... Ao mesmo tempo – sim! – é uma excelente frase! Ora, “matar criancinhas” diz muito mais sobre o sujeito da ação do que simplesmente o verbo “abortar”.
Esse verbo “abortar” é um verbozinho bobinho mesmo... Pode dar a entender tanta coisa, divertir o pensamento.
Abortar, pode ser um enérgico comando militar: “Atenção, tropa, abortar operação, caralho!” (Fico ouvindo o capitão Nascimento, do Bope, dando ordem aos seus homens...) Pode ser uma frase romântica e consumista (não confundir com comunista), daquelas de comercial do intervalo da novela das oito: “Querida, você me fez abortar a ideia de trocar meu Mercedez-Benz por uma Ferrari”. É... Dona Mônica tem razão, seria preciso definir melhor a coisa. Abortar não é um verbo bom de voto, de marketingueleitoralpropagandístico, porque apenas indica que a “criancinha” morreu antes de nascer, mas não diz que foi assassinada (ô verbozinho sem partido esse, heim?!)
Impossível não associar “matar criancinha” com “comer criancinha”... No passado, muito já se disse, assim no Brasil como no Chile – Dona Mônica deve se lembrar daquela frase anticomunista que, espera-se, seja uma frase do passado – que “comunista” – já essa palavra tem partido e até cor, aliás, a cor do capeta! – “come criancinha”. Ora, uma coisa evoca outra... e assim vai.
A estratégia da esposa do candidato é o marketing da simplificação que também pode ser chamada de comunicação simplificada. Ora, e por que não?! Na era do MSN não tem mal nenhum a gente sair por aí simplificando as palavras, abreviando o pensamento, encurtando o caminho da conclusão... Ajuda na eleição, dá menos trabalho para o eleitor. Ele não precisa ficar deduzindo, raciocinando, procurando se infomar, debatendo... – tudo no gerúndio mesmo – porque a conclusão já vem pronta! A frase é da boa para se espalhar. Pega feito fogo de cerrado no mês de agosto em Brasília. Isso é que é ideia preconcebida (nada a ver com concepção... ou é melhor abortar essa frase?).
Depois, é sabido que época de propaganda eleitoral não é propícia para boas discussões políticas, quero dizer discussão madura, debate público responsável sobre temas que interessam à Nação. Imagine se alguém vai conseguir estancar a enxurrada de adrenalina da eleição para discutir política com qualidade!... É o mesmo (tá bem... é quase o mesmo) que se plantar na frente da torcida, em pleno segundo tempo de uma partida entre Flamengo e Fluminense, por exemplo, e falar com aquela vozinha e aquele sorrisinho de Marina Silva: “Olha, xente, por favor, vamos dar uma paradinha e debater essa questão de ficar chamando o juiz de ladrão, tá?!”
Conclusão?
Um tema como esse convoca paixões e ódios, preconceito e misoginia. Não pode ser discutido durante eleição, como futebol também não pode ser discutido no decorrer da partida. A questão do aborto não pode ser resolvida na base da pressão eleitoral. Se período de campanha é o pior momento para debater com equilíbrio, seria bom que tentassem os atores direta ou indiretamente envolvidos nas cenas eleitorescas, pelo menos, evitar o fundamentalismo de opinião e o terrorismo eleitoral. (Me lembrei da manchete do Jornal do Acre, na primeira campanha de Lula à presidência: “Lula sequestra Abílo Diniz” – tem gente que até hoje acredita nisso).
Lamento, sobretudo porque sou mulher, a frase de Mônica Serra. Lamento por Mônica Serra, autora da horrível frase! Lamento por Dilma, alvo da baixaria. Está encerrado o debate, começou a temporada de caça aos defensores de assassinas de criancinha (assassinAs, assim mesmo, no feminino)! Não vou discutir sobre o aborto nessas poucas linhas, não é minha intenção neste momento. Contudo, não posso deixar de expressar minha indignação pela frase infeliz e preconceituosa (não estou dizendo que frase infeliz e preconceituosa não corresponda a um plano de fala...)
O aborto é uma experiência ruim, negativa, um mal, do ponto de vista pessoal, individual. Não conheço nenhuma mulher que, principalmente já tendo passado por isso, saia por aí dizendo, com o indicador levantado: “Abortar é bom! Experimente você também!” Do ponto de vista coletivo, social, o mal é a criminalização da prática. Por isso mesmo, é possível ser contra o aborto e a favor de sua descriminalização. Não há nisso nenhuma incompatibilidade, não há “duas caras”, como pretende uma certa revista de má visão.
Acho que Dilma disse mais ou menos isso no debate. De outro jeito, mas disse. Ninguém ouviu, ao que parece, porque, afinal, estamos em época de eleição, quando algumas frases ecoam mais facilmente que outras.
Pergunte a qualquer torcida...
Beatriz Vargas Ramos
Bem no ponto, Bia!
ResponderExcluirBeijo
Guilherme
A simplificação do raciocínio, o preconceito e a demagogia são hoje as únicas armas da direita. E elas funcionam bem com os desavisados. Texto excelente, Beatriz. Pra variar! Um beijo.
ResponderExcluirOi Bia, você se superou!!!
ResponderExcluirTadinha de dona Mônica! Deve estar arrependida de ter aberto a boca. Será que ela não sabia que
quem tem telhado de vidro não joga pedra no telhado alheio?
Beijos
Oi, Beatriz
ResponderExcluirPensei em sugerir ao cadidato Serra reativar a "Roda dos Expostos",usada a partir da Idade Média, onde se colocava anonimamente a criança na parte externa de conventos e, ao girar-se a roda, a criança era levada para a parte interna.
Aí o problema do aborto acabaria. Simples demais.
Para completar ele criaria um fundo para sustentá-las e educá-las.
Como candidato "moderno" que tem se mostrado, acho que adoraria minha idéia.
Oi Beatriz, conheci seu blog através do blog do Cirilo, e nossa!! vc escreve muito bem! adorei os textos, os poemas, as fotos.. já virei sua seguidora!
ResponderExcluirwww.um-ano-em-dili.blogspot.com